“O pessoal é político”. A frase é um slogan tão popular quanto difícil de atribuir, tendo sido proclamada por tanta gente ao longo das últimas décadas que identificar a origem é uma missão espinhosa. É certo que se popularizou entre as décadas 1960 e 1970, durante a segunda vaga de feminismo, mais concertada com o espírito desses tempos do que a primeira (dos anos 1920), que tinha no direito ao voto feminino reivindicação nevrálgica. Quando Anna Calvi a profere agora, em conversa telefónica com o Observador, a partir de Espanha, decerto não ignora o contexto que a tornou popular, mas está também a desvendar o seu terceiro e mais recente disco, Hunter.

Possivelmente aquele em que mais se expôs, seguramente aquele que a eleva a compositora e intérprete de referência do indie-rock contemporâneo, o terceiro álbum da guitarrista e cantora britânica de 38 anos motivou a marcação de dois concertos em Portugal, agendados para esta sexta-feira e este sábado, dias 19 e 20, respetivamente no Porto (no Hard Club) e Lisboa (no renovado Cineteatro Capitólio do Parque Mayer). Como a Molly que no Ulysses de James Joyce se lamenta de que a guerra levou todos os rapazes bonitos da cidade, Anna Calvi está a dizer-nos — e explica-o logo de seguida — que em Hunter traduz os grandes problemas coletivos para problemas individuais. Está a dizer-nos que a sua história, as suas frustrações, os seus problemas e reclamações são uma peça de muitas que refletem os erros do mundo, que aqui não são a guerra mas o sexismo e o modo como o género ainda condiciona e define (mas não deveria) a vida que cada um quer levar.

Já se tinha ficado com essa suspeita quando, antes mesmo de lançar o disco, Anna Calvi escreveu e revelou um texto sobre Hunter, que se lê no seu site oficial, no qual consegue utilizar mais vezes a palavra “eu” do que os comentadores políticos portugueses a palavra “orçamento” nos últimos dias. Eis uma lista razoavelmente resumida do seu misto de desejos e exigências: “Quero experiências, quero liberdade sexual, quero intimidade, quero sentir-me forte, quero sentir-me protegida e quero encontrar beleza no meio desta confusão, quero ir além do género, não quero ter de escolher entre o homem e a mulher em mim”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acredito que o género é um espectro. Acredito que se nos fosse permitido estar algures no meio, se não fossemos empurrados para os extremos da representação de masculinidade e feminilidade, seríamos todos mais livres. Quero explorar como ser algo diferente daquilo que me foi atribuído ser. Quero explorar uma sexualidade mais subversiva, que vá mais longe do que é esperado de uma mulher na nossa sociedade patriarcal e heteronormativa. Quero repetir as palavras ‘rapariga rapaz’ e ‘mulher homem’ vezes sem conta, para encontrar os limites destas palavras, que se opõem à vastidão da experiência humana”, escrevia ainda Anna Calvi nesse texto de introdução ao disco.

Anna Calvi insistia ainda no “eu” nesse texto, para explicar que mulher quis representar em Hunter. “Acredito na mulher enquanto protagonista, que não esteja simplesmente a responder à história de um homem. Vou lá para fora, para o mundo, e vejo-o como meu: quero algo dele, em vez de ser simplesmente um produto passivo do mundo. Tenho fome de experiências”, refere, acrescentando ainda: “Por vezes as coisas parecem-me claras, outras vezes sinto-me perdida. Sinto-me forte e ainda assim vulnerável, uso o meu corpo e a minha arte como armadura mas também sei que ser verdadeira comigo é estar aberta a poder ser magoada. O objetivo deste álbum é ser primitivo e lindo, vulnerável e forte, ser caçadora e presa”.

“O pessoal é político”. É isso que explica que, num disco onde reflete sobre temas comuns a vários homens e mulheres, Anna Calvi fale tanto do que quer e exige para si. “Hunter teve a ver com mostrar com paixão que quero estas coisas a que todos devemos poder ter acesso”, detalha ao Observador. Há um comportamento habitualmente associado ao homem e mulher que Calvi acha limitativo, que não lhe serve e que “cria uma ideia de que o homem patriarcal, que ensina e corrige os outros, é a pessoa em quem mais podemos confiar”. Para a cantora e guitarrista, “é isso que explica os Trumps deste mundo”.

Anna Calvi em 2014, um ano depois dos últimos concertos em Portugal, país a que regressa esta sexta-feira

Ser instigada a comportar-se de maneira delimitada, circunscrita ao seu género, é algo que Anna Calvi sentiu na pele enquanto mulher, nos seus quase quarenta anos. Nos últimos anos (não editava um álbum de originais desde 2014), tem refletido sobre isso e quis compor e gravar um álbum com o assunto em mente. “Penso muito nas mulheres que conheço, em como são multifacetadas e têm uma personalidade forte e no quão raro é ver esse tipo de mulher retratada na nossa cultura, nos filmes e na comunicação social. Isso influenciou o disco, porque quis retratar uma imagem mais realista das mulheres: imperfeitas, desalinhadas e sexualmente livres, capazes de falar sobre prazer sem ponta de vergonha ou de implicações morais. E isso resulta definitivamente de me sentir frustrada com as limitações que vejo serem impostas às mulheres”, vinca.

As experiências de dor pela qual as mulheres passam, como ter o período e entrar na menopausa, são vividas em silêncio. As mulheres têm de lidar com isso e até sentir-se envergonhadas por passarem por isso. Acho que se essas coisas acontecessem aos homens seriam muito mais normalizadas, naturais de abordar na nossa cultura”, refere.

Ela, Anna Calvi, mulher de 38 anos, gay e reivindicativa, quis portanto fazer um disco que retratasse “anseios e alma” (como nos diz), frustrações e provocações à norma. Quando refere, contudo, que quis “retratar uma imagem mais realista das mulheres”, torna-se percetível que a protagonista de Hunter, disco narrado na primeira pessoa, em que o “eu” é usado tão regularmente quanto no texto de apresentação, não é apenas ela. “O pessoal é político” e a protagonista de Hunter é um protótipo da ideia de mulher — livre, sexualmente descomplexada, sem medo de se fazer ouvir — que Calvi quer ser, uma espécie de “possibilidade [ainda] utópica” (expressão sua) para todas no contexto atual que a cantora quis apresentar ao mundo através da música.

Dez canções sem mácula a atirar o mundo para o tapete

As reflexões servem de suporte ao disco e às letras das dez canções de Hunter, mas não teriam o impacto que têm se não dessem origem ao disco musicalmente mais afirmativo e rico de Anna Calvi. As influências são muitas, de Patti Smith e P. J. Harvey (com quem já foi muito comparada) a Nick Cave & the Bad Seeds. A música do veterano australiano e da sua banda marcam de forma clara o ambiente do álbum, pela tensão que se ouve e sente durante todo este disco, de rock and roll aliado à opulência e classicismo nos arranjos, que parece estar sempre a querer atirar o mundo para o tapete.

Em Hunter, Anna Calvi contou com a contribuição de Nick Launay, produtor musical com longa experiência a trabalhar com Nick Cave e os Bad Seeds, que trouxe para a banda de suporte da cantora o baixista Martyn P. Casey (precisamente dos Bad Seeds) e o teclista dos Portishead Adrian Utley. Estes juntaram-se aos parceiros mais habituais da cantora, o baterista Alex Thomas e a multi-instrumentista (toca guitarra, órgão e percussões) Mally Harpaz.

“O Nick Launay foi muito importante, criámos juntos este tipo de energia visceral e selvagem de banda”, refere Anna Calvi. Essa energia torna o disco mais ambicioso do que os anteriores Anna Calvi (álbum de estreia, logo nomeado para os reputados prémios britânicos Mercury) e One Breath. Editado quatro anos depois do segundo disco — e três anos depois de um EP de versões, Strange Weather, em que colaborou com David Byrne –, Anna Calvi pôs tempo, suor e concentração ao serviço do álbum: “Queria fazer um disco de que me sentisse verdadeiramente orgulhosa. Não o quis apressar, acertar era mais importante do que tê-lo pronto rapidamente”, explica.

Se os arranjos de banda tornam o som do disco mais cheio, com o baixo, guitarra e sintetizadores a ganhar espaço e destaque, a voz de Anna Calvi está diferente, mais aberta. Capaz de sussurrar mas também gritar, cantar a capella ofegante, afinada e quase a gemer, Calvi libertou a voz “de forma consciente”, porque queria que ela denotasse “uma expressão selvagem que se contrapusesse ao que é habitualmente pedido às mulheres: que fiquem em silêncio ou que falem e se comportem de forma bonita e sossegada. Quis que a minha voz não ficasse confinada e pudesse ser selvagem”.

A capa de “Hunter”, disco que Anna Calvi apresenta esta sexta-feira no Hard Club, no Porto. No dia seguinte, desce a Lisboa para um concerto no Capitólio

É também a voz que serve e engrandece ainda mais as dez canções do disco, quase todas sem mácula ou merecedoras de correções críticas. São muitas, quase todas, as que merecem destaque, da magnetizante “As a Man” à solene e lindíssima “Hunter”, passando pela mais rápida e selvagem “Don’t Beat the Girl out of My Boy” (e os versos “In our wanderlust we ride / so wild / like the darkest waves at night” (…) “I shout out let us be us”), pela simultaneamente épica e insinuante “Indies or Paradise” (“Crawl down, down on my knees”), pelos “ohhhhh” da mais melancólica e letárgica “Swimming Pool” ou por uma “Alpha” carnal e sexual (“The lights are on / the TV is on / my body is still on / electrified / statuette against the high rise / I wanna know if I can feel alive”) que acaba em distorção de guitarras.

Ficasse tudo por aqui e já seria um grande disco, mas há ainda para ouvir por exemplo o mantra “I’ll be the boy, you’ll be the girl / I’ll be the girl, you’ll be the boy // C-c-chain me” de “Chain” (em português, “corrente”) e o encerramento solene e belo de “Eden”, com os versos arrebatadores “I tell a lie / on your bed so small / with your heroes on the wall / in the fading light / through the window I see / all your popular trees”.

Hunter é um disco que lança os foguetes e apanha as canas, que varre qual furacão grande parte da música que domina as tabelas de vendas. Agora, pode ser ouvido ao vivo, em dois concertos que se sucedem a atuações no Optimus Alive, em Algés, e Lux Frágil, em Santa Apolónia, Lisboa (2011), no festival de Paredes de Coura (2012) e na Casa da Música, do Porto, e Aula Magna, em Lisboa (ambos em 2013).

“As idas a Portugal até agora foram sempre um prazer, o público é muito apaixonado e conhecedor do que faço. É disso que gosto. Também me lembro de caminhadas no Porto e em Lisboa, duas cidades muito bonitas. Estou muito entusiasmada”, refere ainda, a rematar a conversa.