Quando Bob Dylan entrou naquele estúdio A da Columbia Records em Nova Iorque, a 24 de outubro de 1963, o mesmo estúdio em que entrara no ano anterior para gravar The Freewheelin’ Bob Dylan, aí ainda a ser gozado e chamado de “a loucura do Hammond” pelo pouco impacto que tivera o seu primeiro álbum (homónimo, de 1962), já começava a ser arriscado continuar o gozo.

Dylan tinha voltado, na altura, de uma digressão com Joan Baez, a grande estrela folk da época, que lhe reforçava o estatuto de estrela emergente deste género musical — estatuto que o grande olheiro de talentos John Hammond antecipara, assinando contrato atempadamente com o músico, até para não perder a fama que colocara em perigo ao não ver o talento de Baez na altura certa. A folk já era “a nova cena” entre os jovens norte-americanos, a grande música pop em ascensão: basta verificar que, só nesse ano, foram editados mais de 200 álbuns de música folk, nos Estados Unidos da América.

Cinco meses antes de entrar no estúdio da Columbia nesse dia de 1963, Bob Dylan chamara a atenção quando decidiu não atuar no programa de televisão The Ed Sullivan Show, depois de ver censurada uma canção em que comparava as posições do grupo norte-americano ultra-conservador John Birch Society às de Hitler. “Quem era Bob Dylan” era a pergunta que todos começaram a fazer. Não foi preciso chegar a outubro. Três meses volvidos, em agosto, os norte-americanos perceberam-no melhor, quando o viram marchar e cantar numa grande manifestação pelos direitos civis em Washington D. C. A mesma manifestação em que, colocando-se à frente do Lincoln Memorial, Martin Luther King Jr. contou ao mundo que tinha um sonho.

O verão de 1963 tinha sido bom para o músico, que juntara à polémica da recusa em cantar na televisão e à participação na marcha de Washington D. C., os primeiros louros do seu segundo álbum, The Freewhelin’ Bob Dylan. Editado em abril, esse grande disco da história da folk norte-americana tinha canções memoráveis que nunca mais acabavam, de “Blowin’ in the Wind” a “Girl From the North Country”, de “Masters of War” a “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, de “Don’t Think Twice, It’s Alright” a “I Shall Be Free”. Só o tempo traria o reconhecimento devido, mas o verão trouxera notícias grandes (embora agridoces), com “Blowin’ in the Wind” a tornar-se um êxito nacional na versão e vozes do grupo folk (também nova-iorquino) Peter, Paul e Mary.

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Avançando para 24 de outubro de 1963. Quando Dylan entrou naquele estúdio nova-iorquino para a quinta e penúltima sessão de gravação do seu terceiro álbum de estúdio, só lhe faltava gravar em definitivo três canções. Gravou duas. Uma foi “One too many mornings”, que se tornaria a quarta das dez faixas do disco, uma canção na senda das restantes: voz nasalada, guitarra acústica e harmónica, aqui versando sobre uma rua em lusco-fusco onde os cães ladravam, sobre um início de noite silenciosa que destruía os sons que o protagonista tinha na cabeça, sobre “virar a cabeça para trás e olhar para a sala onde estive deitado com o meu amor”, só para olhar então “de novo para a rua”, em busca de “uma de muitas mais manhãs”. A outra canção era “The Times They Are a-Changin'”, tão importante que daria o nome ao disco, serviria de arranque do álbum e tornar-se-ia uma das canções mais populares, ouvidas, replicadas e discutidas de toda a carreira de Bob Dylan, que em 2019 atingirá os 60 anos de duração.

À época, Bob Dylan queria ainda dar continuidade à herança de Pete Seeger e sobretudo de Woody Guthrie, o seu grande e “último ídolo”, que empunhava a guitarra como arma com a inscrição “esta máquina mata fascistas”, que fizera um Dylan de 20 anos rumar a Nova Iorque e o levara a mais tarde ir visitar Guthrie a um hospital em Nova Jérsia, já com este muito debilitado, para o conhecer, mostrar-lhe admiração e canções e para receber a bênção do mestre. O próprio assumiu-o aliás à revista New Yorker, em 1964, dizendo (entre outros mitos e construções biográficas imaginadas e partilhadas com o repórter e crítico Nat Entoff): “Ver o Woody Guthrie foi uma das principais razões pelas quais vim para o Este. Era um ídolo para mim”.

Haveria melhor maneira de começar um disco folk marcadamente político e interventivo, o primeiro de dois editados em 1964, que abriram caminho para a reinvenção elétrica e rock and roll vindoura, do que cantar com voz nasalada e verve de poeta vagabundo da folk “Come gather ’round people / wherever you roam”?

A canção já deu azo a teorias, conspirações, teses de mestrado e interpretações mais ou menos políticas. Para não falar de versões, dos The Beach Boys, Simon and Garfunkel, Odetta, Nina Simone ou Bruce Springsteen. Do que poucos parecem ter dúvidas é que celebrizava tanto quanto invetivava uma espécie de levantamento popular, que não era bem uma proclamação profética de uma revolução por vir mas um reflexo e uma leitura dos novos tempos, de uma nova geração que tinha na folk uma arma política de contestação contra a América conservadora, castradora e intervencionista, que na altura, é bom recordar, vivia em plena época de guerra no Vietname.

Não seria tanto a instrumentação — simples e que facilmente teria noutras canções desses tempos (em particular outras canções do Bob Dylan desses tempos) dignas rivais — a granjear-lhe a fama e a capacidade de resistir ao tempo, quanto a escrita apurada e a voz que debitava as palavras. Palavras que Dylan achava (ou se calhar sabia) que pareciam ser “o que as pessoas querem [queriam] ouvir”, como afirmou um mês antes de gravar ao crítico e músico de blues Tony Glover, que se tinha deparado com os versos “Come senators, congressmen, please heed the call” (“Venham, senadores e congressistas, por favor atentem à chamada”) escritos numa folha no apartamento de Dylan. A cadência da dicção, que dava à entoação um tom de crónica ora distanciada ora épica, era tão importante quanto os acordes ou a letra, como aliás quem já a ouviu facilmente notará.

E se a música de Bob Dylan não tivesse palavras?

“If your time to you is worth savin’
Then you better start swimmin’
or you’ll sink like a stone 
for the times they are a-changin'”

Os ventos estavam a mudar, Dylan sentia essa brisa como muitos mas cantou-a como poucos.

Depois vieram as mudanças. Veio o abandono da intervenção cívico-política fora do âmbito da escrita musical e o fim da crença ingénua de que o mundo caminhava para belos tempos de respeito pelos direitos das minorias. Veio a compreensão de que não poderia fazer parte “de nenhum movimento” quando foi receber o prémio Tom Paine ao Grand Ballroom, em Chicago, onde em pleno palco, alcoolizado, depois de ouvir falar “da morte do Kennedy, do Bill Moore, Medgar Evers e dos monges budistas que estavam a ser mortos no Vietname” por gente que “dava o seu [doações de solidariedade] para se livrar da culpa” e para quem olhava “sem sentir nenhuma ligação, apesar de supostamente estarem ao meu lado”), Dylan disse que Lee Oswald, assassino de John F. Kennedy, parecia-lhe ser alguém “ansioso” tal como ele. “Olharam-me como se fosse um animal, acharam realmente que estava a dizer que era bom o Kennedy ter sido morto, eram loucos a esse ponto. Estava a falar do Lee Oswald”, recordou um ano depois à New Yorker.

Depois de tudo isso, e desse episódio lhe soltar as amarras a qualquer movimento ou associação cívica que sentisse que não o representava inteiramente (naturalmente nenhuma o fazia), Bob Dylan entrou em fase libertino. Provocador, atirou a música folk e a guitarra acústica às urtigas, divertiu-se a tocar tão “fucking loud” quanto possível no Newport Folk Festival e gravou, no período de um ano (1965), três discos absolutamente incontornáveis da história da música norte-americana, Bringing it All Back Home, Highway 61 Revisited e Blonde on Blonde, editados num período de 15 meses. Foram eles, mas também “The Times They Are a-Changin'” e as canções mais politicamente agitadas e diretas da sua fase inicial da carreira, que lhe deram um Nobel da Literatura.

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Bob Dylan sabe-o por certo e sabia-o já em 1964, mesmo na “ressaca” do desprendimento da folk acústica e do corte abrupto com o passado. Disse-o à New Yorker, nesse ano de 1964: “Já fiz esses discos [com canções que apontam o dedo]. Apoio-os e defendo-os, ainda que parte daquilo estivesse relacionado com querer saltar para dentro da cena [folk] para ser ouvido. E porque não via ninguém fazer aquele tipo da coisa”.

O que também é curioso, nesse perfil de 1964, é as expectativas que Dylan tinha para o seu reconhecimento na posteridade: “Já vivi mudanças suficientes para saber o que é e não é real. (…) Agora, há este negócio da fama. Sei que vai desaparecer. Tem de desaparecer. Este tão propalada fama de massas vem de pessoas que são apanhadas por uma coisa durante um tempo e compram os discos. Depois, param. E quando pararem, não vou continuar a ser famoso”. Ao contrário da escrita de “The Times They Are A-Changin'”, aqui Bob Dylan não acertou em cheio. Pelo contrário, falhou rotundamente. Cinquenta e cinco anos depois, a canção continua a ser ouvida e lembrada por fãs de todo o mundo. Marcelo Rebelo de Sousa citou-a para comentar a atribuição do Nobel, Dylan prossegue com pose de indiferente, aos 77 anos, a gravar discos e a dar concertos desconcertantes onde as canções antigas mal se reconhecem. Afinal, todos querem ser Bob Dylan, ele só quer usar o chapéu.

Bob Dylan está do lado certo da história

A letra completa da canção:

Come gather ’round people
Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You’ll be drenched to the bone.
If your time to you
Is worth savin’
Then you better start swimmin’
Or you’ll sink like a stone
For the times they are a-changin’.
Come writers and critics
Who prophesize with your pen
And keep your eyes wide
The chance won’t come again
And don’t speak too soon
For the wheel’s still in spin
And there’s no tellin’ who
That it’s namin’.
For the loser now
Will be later to win
For the times they are a-changin’.
Come senators, congressmen
Please heed the call
Don’t stand in the doorway
Don’t block up the hall
For he that gets hurt
Will be he who has stalled
There’s a battle outside
And it is ragin’.
It’ll soon shake your windows
And rattle your walls
For the times they are a-changin’.
Come mothers and fathers
Throughout the land
And don’t criticize
What you can’t understand
Your sons and your daughters
Are beyond your command
Your old road is
Rapidly agin’.
Please get out of the new one
If you can’t lend your hand
For the times they are a-changin’.
The line it is drawn
The curse it is cast
The slow one now
Will later be fast
As the present now
Will later be past
The order is
Rapidly fadin’.
And the first one now
Will later be last
For the times they are a-changin’.

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