Foi criada em agosto com a missão de “proceder a uma profunda avaliação independente sobre a organização e funções do Estado” e, em outubro, começou a funcionar. Todas as semanas, às segundas-feiras, os “sete especialistas” nomeados pelos partidos políticos (à exceção do PCP e Verdes que optaram por não nomear ninguém) para integrar a Comissão Independente para a Descentralização reúnem-se para pensar o tema. O mandato fixado por lei dá-lhes até 31 de julho para apresentarem propostas concretas, mas até lá a ordem é de silêncio. Só Alberto João Jardim, em entrevista ao Observador, abriu o jogo dizendo que o que estava em marcha era uma “verdadeira regionalização”, e que todos os membros da comissão estavam em aparente sintonia. João Cravinho, que preside aos trabalhos, não quis comentar as declarações de Jardim, mas avança ao Observador que a ideia é “fazer uma comunicação pública em março”. Antes disso, nem uma palavra: “é prematuro”.

Alberto João Jardim levantou a ponta do véu. “É mesmo uma regionalização, sim. Embora eu saiba que há muitas resistências a isto”, disse em entrevista ao Observador, publicada a 9 de dezembro, quando questionado sobre o que estava em causa na comissão para a descentralização, na qual tem assento por indicação do PSD. Segundo o ex-presidente do governo regional da Madeira, entre os membros da comissão — onde se encontram Carmona Rodrigues (indicado pelo CDS) e Helena Pinto (indicada pelo BE), além do presidente João Cravinho (ligado ao PS) — reina a concórdia. “Todos de acordo em relação a isso: vamos regionalizar”, disse na mesma entrevista, onde ressalvou também que tinha consciência de que havia, na sociedade e na política em geral, “muita oposição, mais por preconceito e por medo do que por outra coisa”.

A verdade é que, como deu nota o Expresso em setembro, todos os membros designados para a comissão são regionalistas. Adriano Pimpão, indicado pelo PS, dizia na altura acreditar que “estaremos em condições de encarar uma administração a nível regional”, numa altura em que passaram já 20 anos do referendo chumbado à regionalização. “Toda a gente aprendeu muito nos últimos anos. Esta comissão é uma forma de mostrarmos que é possível ter uma administração descentralizada com credibilidade e efeitos positivos. É um exercício intermédio, que poderá culminar com a criação de regiões administrativas”, disse ao Expresso. Também Helena Pinto lembrou que o BE é “favorável à regionalização”, pelo que está aberta ao debate, enquanto Carmona Rodrigues não rejeitou a ideia: “Se me perguntar se eu quero um país melhor eu respondo que sim, respondemos todos que sim…”

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Mas questionados pelo Observador sobre as declarações de Jardim, tanto Helena Pinto como Carmona Rodrigues recusaram comentar, admitindo que há uma espécie de acordo entre todos para não falarem sobre o decorrer dos trabalhos. “Fizemos uma espécie de pacto de que só o dr. João Cravinho [presidente] falaria sobre a comissão, pelo menos enquanto não é pública”, disse o nome indicado pelos centristas, sublinhando que haverá um momento para as propostas da comissão serem tornadas públicas. Também a ex-deputada bloquista Helena Pinto pediu “calma”, recusando-se a comentar as declarações de Jardim. “Vamos esperar, ter calma, estamos a trabalhar e este é o momento da reflexão”, disse, sublinhando que, não sendo uma comissão parlamentar (apesar de funcionar sob a alçada do Parlamento), o conteúdo dos trabalhos não é público. “Haverá um momento em que coletivamente será tornado público”, disse.

Esse momento, segundo João Cravinho, não será antes de março. “É prematuro ter uma intervenção pública agora, mas estamos a apontar para março”, disse ao Observador, ressalvando que só será antes se “as coisas avançarem mais rapidamente” do que o previsto. Sobre o facto de um dos membros da comissão ter dito, em entrevista, que o que estava em marcha na comissão era o desenho de uma regionalização do Estado, o ex-ministro do Planeamento e Administração do Território do governo de António Guterres não confirmou nem desmentiu. “Compreendo o que me está a perguntar, mas não vou comentar. O dr. Alberto João Jardim está no direito dele, não tenho nenhum problema com isso”, limitou-se a dizer.

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O máximo que os membros da comissão dizem ao Observador é que o objetivo dos trabalhos é “claro” e está fixado na lei. Publicada em Diário da República a 21 de agosto de 2018, a lei que define a criação da comissão para a descentralização diz que cabe à comissão “promover um estudo aprofundado sobre a organização e funções do Estado, aos níveis regional, metropolitano e intermunicipal, sobre a forma de organização infraestadual”, bem como “desenvolver um programa de desconcentração da localização de entidades e serviços públicos, assegurando coerência na presença do Estado no território”. Outra das missões da comissão é fazer “uma análise comparativa de modelos” de países da União Europeia e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Os membros “atuam de forma independente, não podendo solicitar nem receber instruções da Assembleia da República, do Governo ou de quaisquer outras entidades públicas ou privadas”, lê-se ainda na lei, que deixa também claro que os sete membros nomeados recebem um ordenado equiparado a dirigente superior de 1.º grau (o que equivale a cerca de 4.090,80 euros brutos por mês).

Além das nomeações do PSD (Alberto João Jardim), do PS (Adriano Pimpão, que foi reitor da Universidade do Algarve e secretário de Estado do Desenvolvimento Regional nos governos de António Guterres), do BE (Helena Pinto) e do CDS (Carmona Rodrigues), o presidente da Assembleia da República indicou os outros três nomes: João Cravinho, António Fontainhas Fernandes e João Ferrão, uma vez que o PCP, “Os Verdes” e o PAN optaram por ficar à margem por não concordarem com os moldes em que foi negociada a descentralização entre PS e PSD.

Já em abril, quando Rui Rio, acabado de ser eleito líder do PSD, foi a São Bento fechar dois acordos de regime com o primeiro-ministro, um deles era precisamente o da descentralização e as entrelinhas do texto (assinado por Álvaro Amaro e Eduardo Cabrita) já previam um caminho para a regionalização a partir da legislatura seguinte. O que resultou desse aperto de mão simbólico foi, além da ideia da criação de uma comissão independente para a descentralização com mandato até julho de 2019, um calendário com prazos para processos legislativos que prevejam a conclusão da transferência de poderes e ainda os primeiros contornos sobre uma nova “reforma da organização subnacional do Estado” — que é o mesmo que dizer, segundo várias interpretações que foram feitas na altura, os primeiros contornos para uma nova regionalização.

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Nessa altura, ficou claro que os projetos que pudessem vir a sair da comissão só veriam a luz do dia na próxima legislatura, com o quadro político-parlamentar pós-2019. A ideia era, portanto, que a nova organização “subnacional do Estado” começasse a ser estudada já, mas só ser vertida em projetos de lei no Governo que se seguir. Isto, claro, se Costa e Rio se mantiverem líderes dos dois partidos.

Em paralelo a este processo vai arrancar a transferência de responsabilidades para as autarquias em várias áreas, com uma descentralização de competências que vai ser feita de forma gradual até 2021. Ou seja, cada município vai ter a liberdade para decidir o ritmo em que quer assumir as responsabilidades que até agora eram do governo, em setores como a Educação, Saúde, Proteção Civil, Habitação, Cultura ou Policiamento de Proximidade, por exemplo. O tema da transferência do Infarmed para o Porto ou a regulação dos veículos tipo Uber também foi passado para a alçada da comissão, para que venham a ser as autarquias a gerir o transporte de passageiros em veículos caracterizados e não caracterizados.

Costa e Rio, de resto, são permeáveis à ideia de regionalização. Em janeiro de 2017, à margem de uma conferência em Barcelos, o ex-presidente da câmara do Porto dizia que fazia sentido colocar o tema da regionalização “na primeira linha da discussão política”, alegando que “o país não está bem como está”. “Todos nós temos noção de que o país como está não está bem. A forma como foi gerido ao longo dos últimos anos, da última década ou até das duas últimas décadas também não está bem. Trouxe-nos para um endividamento brutal, trouxe-nos para uma enorme despesa pública e uma fraca eficácia”, referiu, considerando ser necessário pensar “numa forma diferente de governar o país”, aproximando as decisões e os decisores, e considerando que uma regionalização bem feita pode ser o caminho para a diminuição da despesa pública.

Mais tarde, em julho desse ano (nas vésperas das autárquicas e seis meses antes de se tornar líder do PSD), voltaria a dizer que o país devia “encetar um debate profundo” e encontrar uma “forma mais equilibrada e profunda” de gestão, que podia passar por uma regionalização. “Não quero dizer que sou a favor da regionalização. Não sou, depende. Aquilo que digo é que vale a pena o país encetar um debate profundo para encontrar uma forma mais equilibrada e profunda de gerir o país”, disse na altura, recordando que fez campanha contra quando, em 1998, o país referendou a regionalização, mas que o seu pensamento evoluiu de lá para cá.

Também o secretário-geral do PS e primeiro-ministro, António Costa, defendeu várias vezes a regionalização do país. Em janeiro de 2017, quando ainda era presidente da câmara de Lisboa, disse que a sua experiência de autarca lhe tinha dado uma outra visão sobre a descentralização do Estado. Nessa altura, depois de ter defendido círculos uninominais para a escolha dos deputados, Costa prometia que quando voltasse ao governo faria diferente do que fez quando lá esteve (enquanto ministro da Justiça e da Administração Interna), mas sublinhava que para fazer uma verdadeira regionalização era preciso “evoluir e desbloquear o impasse constitucional”.

Na entrevista de há duas semanas ao Observador, Alberto João Jardim disse mesmo que quando Rui Rio o convidou para integrar a comissão lhe disse claramente que o mote era iniciar o debate profundo da regionalização. “Eu só aceitei se fosse para isso. Ele [Rui Rio] é pela regionalização, sempre foi”, disse. E questionado sobre o porquê de, se assim é, os líderes políticos, nomeadamente o primeiro-ministro e o líder do PSD, não assumirem diretamente a bandeira da regionalização, Jardim defendeu-se com a “independência” da comissão. “A comissão está a fazer um trabalho independente que vai apresentar à Assembleia da República”, limitou-se a dizer. Ou seja, primeiro vem a parte técnica (ainda que liderada por quatro personalidades políticas e apenas duas ligadas às universidades), depois a bola passará para a Assembleia. Aí sim, será o tempo do jogo político.