O objetivo da Convenção Nacional do Ensino Superior era fugir aos três Ps que normalmente fazem saltar o ensino superior para as páginas dos jornais: praxes, protestos e propinas. Mas a partir do momento em que tanto Manuel Heitor, ministro do Ensino Superior, como o Presidente da República defenderam o fim faseado das propinas no 1.º ciclo dos estudos académicos, no encontro de segunda-feira, no ISCTE, o tema ganhou contornos de campanha eleitoral. O PSD foi rápido a acusar Marcelo Rebelo de Sousa e Manuel Heitor de terem mudado de ideias sobre este assunto, mas tanto o Presidente como o ministro, questionados pelo Observador, rejeitam essa ideia.

Marcelo mudou de ideias? A opinião do Presidente evoluiu

“Eu não enjeito a minha posição do passado, mas 20 anos depois concluo que as propinas não deram resultado”, disse o Presidente da República questionado pelo Observador, sublinhando que sempre defendeu as propinas, “preferencialmente relacionadas com a condição socioeconómica do aluno”.

David Justino, vice-presidente do PSD, lembrou esta terça-feira, na apresentação do documento do partido sobre “Ensino superior – uma estratégia para a década”, que foi Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto líder do PSD, que deu aval à subida das propinas do ensino superior através de um “acordo de regime” com o Governo socialista de António Guterres.

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O problema das propinas estaria resolvido quando o professor Marçal Grilo com base num acordo de regime restituiu as propinas no ensino superior. Nessa altura, era líder do PSD o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Pela primeira vez há um ministro do PS que coloca em causa este acordo”, argumentou.

Embora Marcelo Rebelo de Sousa admita que a posição do PSD tenha viabilizado a aprovação do aumento das propinas do então ministro da Educação, Marçal Grilo, já que não votou contra, também lembra que a bancada laranja não foi a favor do diploma.

“Eu não votei a favor da reforma do professor Marçal Grilo. O PSD absteve-se e, por isso, acabou por viabilizar a reforma. Eu nunca questionei as propinas, mas 20 anos depois verifico que não resultaram, daí ter proposto um esquema mais complexo”, explica o Presidente da República. A sua proposta passa por um pacto de regime, ou seja, uma alteração que não dure apenas uma legislatura, e que seja a longo prazo, num mínimo de 10 a 15 anos. Para além disso, antes de avançar com a extinção das propinas, Marcelo Rebelo de Sousa diz ser necessário procurar uma solução ligada ao financiamento do sistema de ensino em geral, verificar se há recursos para avançar com a medida e, igualmente fundamental, perceber se há vontade dos portugueses.

“É preciso saber qual a vontade dos portugueses que até podem considerar que este não é um assunto prioritário. Podem considerar que a prioridade é outra, a saúde, por exemplo. O que é importante é criar um debate sobre o tema e chamar a atenção para o drama de algumas famílias”, sustenta o chefe de Estado.

Marcelo Rebelo de Sousa alerta para uma outra questão. “Estamos a afastar-nos de outros países da Europa onde o ensino obrigatório já vai até ao superior e é preciso convergir com a Europa. Também temos de ver que esta medida seria sempre faseada, não é para amanhã, é um debate a longo prazo.”

Ao final da tarde, Belém publicou mesmo uma nota no site da Presidência da República com um esclarecimento formal da posição de Marcelo Rebelo de Sousa. Pode ler a nota na íntegra aqui.

Marcelo concorda com fim das propinas e defende que educação é matéria de regime

E Manuel Heitor mudou de ideias? Ministro diz que não

O Ministro da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior também garante ao Observador que não mudou de ideias, como o acusou a deputada do CDS Ana Rita Bessa, logo na discussão na especialidade do Orçamento do Estado. Uma acusação partilhada pelo PSD, na voz da deputada Margarida Mano. O que defende não é a abolição, pura e simples, das propinas nem tão pouco a gratuitidade de todos os ciclos de ensino do superior. E, muito menos, de forma imediata.

A social-democrata, no Fórum TSF, acusou Manuel Heitor de mudar de ideias no espaço de dois anos: “Em 2016, o ministro dizia que não se podia olhar para as propinas de forma demagógica”, disse, considerando que associar a ausência de estudantes do ensino superior às propinas “é demagógico, e só o Bloco de Esquerda apoia isto”, quando “pagar uma creche é mais caro que pagar propinas”. A deputada frisou ainda que esta posição surge a “meses das eleições”.

Ministro do Ensino Superior escusa-se a comentar congelamento de propinas

Na altura, em março de 2016, Manuel Heitor escusava-se a comentar a proposta do PS e do BE de congelar o valor máximo das propinas cobradas no ensino superior público para o próximo ano letivo. “Essa é uma questão onde o Governo não se deve introduzir” disse então, acrescentando: “A questão das propinas está perfeitamente regulada em Portugal. Está estabilizada e por isso não há nenhuma pergunta e nenhuma dúvida sobre esse assunto.”

Hoje, diz que não houve inversão na estratégia do governo. “Não houve qualquer mudança de opinião, a política e estratégia deste governo sempre teve como objetivo aumentar a base social do ensino superior e os resultados são claros: o número de estudantes no ensino superior sofreu um aumento de 4% desde 2015, passou de 358 mil para 373 mil; o número de estudantes inscritos no primeiro ano pela primeira vez aumentou de 87 mil em 2015 para 103 mil, estando hoje inscritos em formações curtas pela primeira vez mais de 9 mil estudantes. O número de bolsas de ação social aumentou de 64 mil para mais de 71 mil desde 2015”, explica o ministro ao Observador, reagindo assim às críticas da deputada Margarida Mano.

As propinas são mesmo um factor de desigualdade social?

Passou então o fim das propinas a ser uma prioridade do governo que não era em 2016? “As prioridades mantêm-se em aumentar o número de estudantes, reforçar os apoios sociais e reduzir os custos das famílias. Para isso foi lançado o plano nacional de alojamento do ensino superior com o objetivo de duplicar o número de camas a preço reduzido nos próximos anos. E já para o próximo ano letivo foi reduzido o valor das propinas. Neste contexto o contrato de legislatura assinado com as instituições de ensino superior (IES) foi cumprido tendo ficado inscrito na lei do OE para 2019 um aumento respetivo da dotação para as IES”, sublinha o ministro.

“Nada mudou e a estratégia do governo para 2030 tem sido consistente em reforçar o processo de convergência com a Europa de forma a garantir a ambição de aumentar a frequência de jovens no ensino superior de 4 para 6 jovens de 20 anos”, explica Manuel Heitor.

Mas as propinas são para acabar ou não? Mais ou menos

Durante a Convenção Nacional do Ensino Superior, nem Manuel Heitor nem Marcelo Rebelo de Sousa se comprometeram com o fim das propinas. Da parte do ministro, houve um reafirmar de declarações já feitas no passado: é desejável que o acesso ao ensino superior seja livre, tendencialmente gratuito, e que isso aconteça no espaço de uma década.

No entanto, o que o ministro defende é, a breve trecho, o fim das propinas apenas para a formação inicial do ensino superior, ou seja, para as licenciaturas. Os segundos e terceiros ciclos continuariam a ser sujeitos a propinas — e poderiam até vir a aumentar de valor — já que que a lógica é de que seja o beneficiário e não o utilizador a pagar a fatura dos estudos académicos. Nesta lógica, o utilizador é o licenciado, o beneficiário são os graduados (alunos de mestrados para cima) e as empresas que ganham recursos humanos qualificados.

Ministro defende fim das propinas no ensino superior

O primeiro passo foi já dado no Orçamento do Estado para 2019 através de um acordo com o Bloco de Esquerda que permitiu baixar o valor anual das propinas em 212 euros, passando de 1068 euros para 850 euros. Esta decisão irá custar à volta de 50 milhões de euros às universidades, já que as propinas representam parte significativa das suas receitas próprias. O governo comprometeu-se desde logo a compensar as instituições pela perda deste valor e já admitiu que para o próximo ano letivo haverá nova redução.

Para o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, que estima o valor total das propinas em mais de 200 milhões de euros, não é preocupante que se decida terminar com elas. Fundamental é o governo assegurar que não serão as universidades a ter de inventar novas formas de criar receitas próprias. “Se, no limite, for para terminar as propinas na totalidade, o governo terá de garantir esses 200 milhões de euros, evidentemente”, disse ao Observador.