O segundo dia. Ei-lo. Esta pompa toda porque o segundo episódio de um festival que conta quatro pode ser profundamente agridoce. Aquele sentimento que diz “a sério que estou neste estado físico e ainda faltam mais duas tareias destas?”. Por outras palavras, reumático, a idade que já não é a mesma. Só que a lamúria nunca aliviou dor nenhuma, portanto, carrega Bons Sons, aí vamos nós, conta com o nosso empenho.

São 15h, estamos de barriga cheia e começamos com um digestivo, um concerto surpresa de Afonso Cabral, que na Rua da Feira, debaixo de um limoeiro, nos mostra canções do seu recente disco de estreia a solo Morada. Tudo feito com duas guitarras acústicas, e na companhia do guitarrista Pedro Branco, sem microfone e com o filho do músico, de panamá e jardineiras vestidas, a fazer uma espécie de performance livre com muito air guitar e pinta de bailarino. Tomás, o miúdo, depressa pede “Baby Shark” ao pai. Que lhe diz que fica para mais logo. Belo momento de intimidade, de partilha não-amplificada.

O calor, neste segundo dia, parece estar a ganhar à chuva, de tal maneira que se calhar uns chuviscos não seria mal visto, daqueles inofensivos, claro. Espreitamos umas barraquinhas e depois damos um pedaço de repouso às pernas – Fogo Fogo na quinta-feira maltratou-nos – antes que seja tempo de Sallim. A caminho encontramos a salvação para o calor: um dos Jogos do Helder – uma série de brincadeiras tradicionais espalhadas por todo o recinto e que muita animação dão aos visitantes, que nem passado onde se investia neste tempo, nestas jogatanas de rua em comunidade – consiste em acertar, em andamento, num balde de água que está suspenso por cima de nós. Nós que é como quem diz, não íamos encharcar o equipamento único que temos vestido, mas que há quem o faça até repetidamente lá isso há.

O Bons Sons virou a aldeia. E foi só o primeiro dia

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O bafo continua e Sallim aparece como uma brisa de encantamento e pop doce, genial, uma das mais interessantes artistas portuguesas da atualidade, sem questão. E uma das primeiras é “Bom para mim”, do disco A ver o que acontece (editado em janeiro deste ano). E isto é mesmo bom para mim, bom para todos. Os teclados de Lourenço Crespo, o desvario da guitarra de Miguel Abras, mais esta voz límpida são como terapia instantânea. Ao lado, um velhote local dança como se fosse o fã número 1 da música de Francisca Salema. Ela que nos canta algo que nunca antes fez tanto sentido:

“Quando é que o calor se vai embora outra vez
que agora só com o frio me vou esquecer do que o calor me fez”

Isto é amor e estar em casa e arrumar sem razão a estante dos livros como só o automatismo nos pudesse salvar. Sallim: se estiveres a ler, é só para dizer que a tua música tem muito impacto na vida das pessoas. Isto é a sério. E acaba com um bombom, um tema novo, que mais tarde ouviremos em disco, eventualmente.

Subimos, em procissão, até à igreja, onde nos voltamos a encontrar com Afonso Cabral e agora mais à sombra, com uma certa brisa de fim de tarde, que parece bem combinar com a pop em português do membro dos You Can’t Win Charlie Brown, em palco com Pedro Branco na guitarra e António Vasconcelos Dias nas teclas. É a primeira vez que tocam Morada ao vivo, editado no início de julho, portanto Afonso admite o nervosismo. Costas voltadas à igreja porque isto faz-se com esforço, não com ajuda divina, e é pop que cruza teclados e sintetizadores com cordas que parecem aqui ter a função de harmonizar os desvios das melodias menos óbvias. Não é preciso nervosismo nenhum, os primeiros passos de Afonso Cabral a solo são mais que certeiros, chegam a ter distorção e são a prova de que isto é coisa com onda. Mais: que o homem está em forma. Quando chega o tempo de “Anda a Estragar-me os Planos”, tema que Afonso Cabral e Francisca Cortesão fizeram para a voz de Joana Barra Vaz em contexto de Festival da Canção, isto ainda sobe de nível, é que a malta sabe a letrinha toda.

O sol foi-se pondo, o frio, até aqui fantasma no Bons Sons lá vai dando uns sinais, fazendo-se sentir, e portanto jantemos para a temperatura subir. Uns quantos cafés depois damos connosco em Paraguaii, conjunto de Guimarães, que faz da sua bandeira a eletrónica movida a descargas rockeiras. O estranho é este momento ser o mais próximo que o Bons Sons teve de uma festa de techno. Não é que seja de todo parecido sonicamente, não é que tenha que haver uma festa de techno e não há problema nenhum com as festas de techno, mas do jeito como algum do público dança é essa a ideia que dá, que isto é uma maluqueira acelerada. Não é. É, na verdade, uma incursão na música de dança, que pelos vistos estava em falta a esta multidão, mas que não acrescenta grande criatividade, grande vida a este segundo dia de festival.

Quando começou, o Bons Sons tinha “tudo para dar errado”. À décima edição é a festa que se vê

A maralha lá se vai mexendo, e ou é da nossa vista, ou esta sexta Cem Soldos está mais concorrida. Está tão concorrida que até dá para quatro crianças se sentarem perto de um ecrã gigante do Palco Variações, em círculo, a brincar com legos. Ah pois. No Bons Sons o mundo é das crianças. É verdade que já são quase 23h, mas também é verdade que a garotada está de férias. E 23h é também hora de rumar ao Palco Zeca Afonso, onde os First Breath After Coma se apresentam com Noiserv, em mais um dos concertos especiais promovidos pelo Bons Sons para assinalar está décima edição. Antes de aqui chegarmos, pelas sinuosas ruas de Cem Soldos, chocamos com uma barraquinha onde pai e filho tocam cajon lado e lado, paragem de meia dúzia de transeuntes que devem vir para a mesma morada que nós.

É que esta mancha de gente, a cobrir a colina, é tanta que mal sobem ao palco David Santos (aka Noiserv) diz: “Assim uma pessoa falece”. O post-punk dos cinco rapazes de Leiria – que acabam de lançar o seu disco/filme NU – com a orquestra ambulante, e bonita desorganização de Noiserv, mescla inusitada. E repita-se ainda que as oliveiras em cima do palco, mais o belo desenho de luz, do roxo ao azul, é sempre um fator que acrescenta uma qualquer ideia cénica ao momento. Depois é que a pintura ficou borrada, um problema com uma tarola gerou um impasse no concerto, que levou Noiserv a começar a improvisar, ocasião curiosa e divertida. Outra garantia é a de que os First Breath After Coma estão crescidos, confiantes, com bastantes fãs e perfeitamente estabelecidos no panorama nacional da música portuguesa. Uma das fusões mais interessantes foi a versão do hit – só para pensarmos na possibilidade de afirmarmos que Noiserv faz hits – “I Was Trying To Sleep When Everyone Woke Up” (A.V.O., 2013), que ganhou dois bongos e ficou de cara lavada.

A noite vai longa, mas não demasiado longa para um concerto que já fazia falta neste segundo dia, o punk-funaná ou o hardcore-africano, como se preferir, de Scúru Fitchádu é uma espécie de vitamina para os ainda muito resistentes presentes no Bons Sons. Marcus Veiga oferece originalidade em doses abundantes, violentas, numa espécie de ritual entre a festa e o funeral, uma passagem qualquer para um lugar mais catártico, numa zona limite onde se dança e berra – em crioulo – porque berrar significa liberdade, reivindicação, celebração. Vibração que nos parece muito apropriada para fechar as contas deste dia 2 do Bons Sons 2019.