Título: Ruralidades / Ruralities
Fotografias: Jorge Bacelar
Prefácio: António Filipe Pimentel
Editor: Centro Atlântico
Apoios: Municípios de Murtosa, Figueira de Castelo-Rodrigo e Proença-a-Nova, Adega Castelo-Rodrigo
Páginas: 326, hardcover
Preço: 39,90 €

Enquanto decorria no Museu Nacional de Arte Antiga o “Inquérito ao Retrato Português” (2018), quem descesse à cafetaria para desfrutar o jardim debruçado sobre o rio Tejo deparava-se com duas grandes telas exibindo fotografias de autoria de Jorge Bacelar, que julguei serem um complemento daquela exposição. De alguma maneira, aquelas figuras de mulheres, na sua robustez e dignidade antigas, simplicidade doméstica e quotidiana, que emergiam de fundos muito escuros ou opacos segurando galo e gato sob a luz das melhores naturezas-mortas, tornavam aquele exercício fotográfico digno de figurar entre as obras daquela exposição de “tirar polo natural” que quis desafiar os limites da representação e da habitual galeria de representados. Mas estava enganado, como me explicaram — ou talvez não, como o prefácio agora esclarece (p. 9).

Que aquelas e muitas outras imagens de Jorge Bacelar nos apareçam neste belo livro apresentadas por António Filipe Pimentel, celebrado director do nosso primeiríssimo museu nacional (2009-18) — depois de o terem sido por Olinda Santana em 2018, quando a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro as mostrou na sua biblioteca central em Vila Real, e o título Ruralidade ainda não tinha ganho a pluralidade actual —, não deve surpreender-nos, precisamente porque o que há de tão inesperado e profundo no trabalho da luz por Jorge Bacelar transcende claramente a fotografia por si mesma e merece ser apreciado num quadro comparativo e historicamente amplificado de história da arte, por mais que o seu autor se declare, como fez numa entrevista a Maria João Seixas, desinteressado de uma cultura visual que o sustente ou sobre a qual reflicta.

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A verdade é que no curto período de seis anos em que usa uma câmara fotográfica, Bacelar (1966-) atingiu uma maturidade técnica que a ninguém passa despercebida, ao mesmo tempo que o microcosmos da sua “clínica de campo” enquanto veterinário — e sem dúvida também o seu carácter — lhe facilitaram o acesso a pessoas e ambientes da vida dos campos onde amplexo, afecto e interdependência entre homem e animal — do pato mais pequeno que cabe na palma duma mão ao mais imponente boi ou anafado porco — têm expressões claras em todos os momentos da vida, a de uns e a de outros, proporcionando-lhe a representação artística de um mundo específico e inconfundível.

Mãos inchadas por uma vida de trabalho com enxada, foice ou machado afagam com ternura pequeno cão (Murtosa, pp. 84-85) ou gato (Válega, p. 97), mas também há encenações fotográficas em que boi, galo e homem (Salreu, pp. 107) de tão próximos formam um só; em que mulher acolhe no colo ninhada peluda de castro-laboreiros ao lado de mesa com abóbada aberta — um tema recorrente — e rama de grelos, alguns já cortados; dois jovens da Murtosa na obscuridade seguram nos braços, à vez, esplendoroso pavão (p. 293), ganso (p. 89) e pato (p. 211); e homem sentado acolhe sobre o peito a enorme cabeça dum bode (Murtosa, p. 21, e contracapa do livro). Em Vilarinho de São Roque, mulher sorri-nos com o seu coelho cinzento ao colo e sobre o ombro (p. 179). Em Bunheiro, numa borda de pocilga, camponesa afaga o focinho do seu suíno colossal (p. 151 — uma imagem que ficou mal impressa: cfr. Ruralidade, [p. 24]), enquanto outra, abraçada a uma cabra nova, sorri à entrada no curral de outras quatro. A variedade de situações representadas dá-nos a riqueza deste pequeno mundo não mediatizado, desdobrado em ambientes interiores que Jorge Bacelar, faltando-lhe palavra mais precisa, classifica como “mágicos”.

O amplexo humano-animal tem sem dúvida neste portfólio fotográfico um caleidoscópio monumental que nos reconforta, mas também não lhe falta o elogio do companheirismo e da família diante das agruras e sacrifícios da vida do campo, a que é dedicada uma pequena série em que se destacam a admirável fotografia a preto e branco da p. 215 e as coloridas das pp. 127, 219, 27 e 251. Ou da fé, como aquela mulher de Veiros (Estarreja) que exibe o oratório itinerante da aldeia — “Por favor, só 24 h em cada casa” lê-se no papel colado na portada (p. 67) — ou aqueloutra que em Bunheiro (Murtosa) vem admirar à luz duma janela o seu velho crucifixo de parede.

Jorge Bacelar também se deixou surpreender pela luminosidade dos frutos da terra, como, entre outros, no fabuloso retrato de camponesa segurando no colo e mão uma dúzia de pêros verdes (Veiros, pp. 112-13 — uma fotografia que muito rapidamente confundiríamos com pintura a óleo na parede de um grande museu…), mulher ou criança com limões (Avanca, p. 233; Murtosa, p. 115), outras camponesas com: dois grossos pães (Rio de Onor, p. 245), abóboras sobre a mesa (Beduído, p. 93), um ramo de grelos ao peito (Vilarinho de São Roque, p. 295), ou simples batatas nas mãos (Castelo Rodrigo, p. 227; Murtosa, p. 235) e naturalmente a capa do próprio livro, em que melancia e meloa abertas resplandecem de cor. Mas a série de naturezas-mortas de Jorge Bacelar também capta de forma magnífica o luminoso de vasilhame metálico (v. pp. 87, 265, 229, 251, 117), e vítreo (p. 75), ou do fogo acesso (p. 79, em especial), levando-nos a pensar — melhor dito, a repensar uma centena de vezes — o que sentiria este fotógrafo “ingénuo” e intuitivo se acaso confrontasse o seu trabalho com o de alguns pintores barrocos. A fotografia da p. 303, em que homem sentado a uma mesa com fruta, copo e garrafa, recebe luz do lado oposto (a primeira imagem do breve catálogo de Vila Real), não deixa dúvidas quanto a essa misteriosa filiação estética, que creio ser parte do justificativo para a quantidade de prémios internacionais que o fotógrafo tem recebido desde 2014.

Dir-se-ia que os animais e a sua gratidão a quem os acolhe e alimenta ajudam a relativizar a dureza da vida — “o anátema injusto do castigo diário”, a que se refere Filipe Pimentel no seu prefácio, intitulado “O dom” — dos homens e das mulheres que desde miúdos ganharam, pela agricultura e a ruralidade, a clara noção do tenaz ciclo natural de nascer, crescer e morrer, das plantas da horta e bichos de estábulos e pastos aos parentes e vizinhos de aldeia. Todos partilham espaços sob telha, bastante precários por sinal, onde há quase sempre por perto uma porta ou janela (nem sempre patente, e cujo exterior nunca se dá a ver) donde chega uma luz suavizada, que ilumina as figuras retratadas.

Bacelar não trabalha com aparatos de estúdio fotográfico nem faz manipulações digitais, preferindo tirar todo o partido da especialíssima luz da Ria de Aveiro que trespassa as povoações — entre as quais a Toureira, onde vive — em que habitualmente trabalha como veterinário ao serviço da Proleite, uma empresa de Oliveira de Azeméis.

Quando nos faz falta conhecer ou reconhecer melhor a gente e a vida do interior do território continental, os seus enormes problemas mas também as suas virtudes antigas, entre as quais seguramente este pacto vital, este álbum justamente patrocinado por municípios que querem ver representada com dignidade “a nossa gente” merece ser saudado com ufania e assombro, como trabalho artístico de grande valor gerado pelo amor e respeito a uma comunidade de “invisíveis”, mas cuja lição de vida não é assim tão pequena quanto isso.