Estava há semanas no centro do furacão, alvo de críticas pelas práticas internas pouco democráticas, pela incapacidade de tornar a Academia francesa do cinema mais igualitária no género dos seus membros e pelas nomeações recentemente anunciadas para a próxima edição dos prémios César, os “Óscares de França”. A decisão, ainda assim, caiu como uma bomba na imprensa francesa: a direção da organização francesa Associação para a Promoção do Cinema, que supervisiona a Academia das Artes e Técnicas do Cinema (esta, por sua vez, atribui anualmente os Césares), demitiu-se em bloco.

A demissão do conjunto de diretores da Associação foi anunciada esta sexta-feira. Em comunicado citado, por exemplo, pelo jornal francês Le Monde, o conselho de administração da Associação Para a Promoção do Cinema revelou ter optado “de forma unânime” pela demissão esperando que esta possa “honrar aqueles que fizeram cinema em 2019, retomar a serenidade e garantir que a festa do cinema continue a ser uma festa”.

A demissão da entidade que supervisiona a Academia Francesa do Cinema acontece na sequência da fragilidade a que ficou associada após uma série de episódios que mancharam a imagem pública e credibilidade da Associação para a Promoção do Cinema.

@ O cineasta francês Jacques Audiar depois de receber o César de Melhor Realizador há um ano, na gala dos grandes prémios do cinema francês (@ BERTRAND GUAY/AFP via Getty Images)

Os episódios são elencados em meios franceses como o Le Monde mas também em órgãos norte-americanos como a Variety e a revista Vanity Fiar. Um desses episódios foi o veto que foi recentemente e inicialmente dado (posteriormente revertido) pela Academia das Artes e Técnicas à presença das cineastas Claire Denis e Virginie Despentes num jantar anual organizado pela indústria francesa do cinema, o “Jantar das Revelações”. Nesse jantar anual, algumas promessas do cinema francês que se destacam como revelações anualmente podem escolher alguns mentores veteranos. Numa fase inicial Alain Terzain, o presidente da Academia francesa das Artes e Técnicas do Cinema, vetou mesmo os nomes das reputadas Clair Denis e Virginie Despentes para mentoras.

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Outro episódio que motivou críticas à associação que supervisiona a Academia das Artes e Técnicas do Cinema francês foi as 12 nomeações para os prémios César atribuídas ao mais recente filme do realizador Roman Polanski, “J’accuse — O Oficial e o Espião”, que conta no elenco com atores como Louis Garrel e Emmanuelle Seigner. O realizador franco-polaco de filmes como “A Semente do Diabo”, “Chinatown”, “O Inquilino”, “Tess” e “O Pianista”, que em 1977 assumiu ter tido sexo com uma rapariga de 13 anos, tem uma maior aceitação profissional atualmente em França do que nos EUA, onde há um boicote generalizado e quase absoluto ao seu trabalho devido ao seu passado criminal. As 12 nomeações atribuídas ao seu filme, contudo, criaram polémica e fragilizaram a imagem dos prémios.

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Mais problemático e decisivo do que as 12 nomeações aos Césares atribuídas ao último filme de Roman Polanski foi a perceção instalada entre atores e realizadores franceses do significado dessas 12 nomeações. De certo modo, o momento serviu sobretudo de pretexto para repensar os moldes de funcionamento da Academia das Artes e Técnicas do Cinema, que entrega anualmente os prémios César. Esta segunda-feira, por exemplo, perto de 200 artistas franceses tinham publicado uma carta aberta no jornal Le Monde questionando o modelo de funcionamento de uma entidade que consideram pouco democrática e igualitária nas suas práticas.

Ao contrário do que acontece em outros países, como os EUA, os membros da Academia francesa das Artes e Técnicas do Cinema não podem escolher a direção do órgão — essa é decidida pela Associação Para a Promoção do Cinema, que a supervisiona  — nem têm qualquer interferência na organização dos prémios César. Além disso, o desequilíbrio de género existente nos membros da Academia francesa do cinema, que tem perto de 65% de homens e perto de 35% de mulheres, também não agradava aos membros, que não poderiam ter qualquer interferência na composição do órgão.

O realizador francês Xavier Legrand num novo prémio do cinema francês: os “Césares do Liceu”, dedicados a estudantes de cinema (@ ALAIN JOCARD/AFP via Getty Images)

O presidente da Academia, Terzain, ainda chegou a prometer recentemente numa entrevista ao jornal francês Le Journal du Dimanche que iriam ser implementadas “medidas para reformar e modernizar” a organização e que seriam recrutados em breve “700 a 800 mulheres e profissionais de cinema para equilibrar o atual desequilíbrio” de género dos membros do órgão e ainda 12 mulheres para a direção da Associação que supervisiona e gere a Academia francesa do cinema. As promessas, contudo, não chegaram: e a direção da Associação demitiu-se agora em bloco.