Eles. Eles isto, eles aquilo. E muito bem. Afinal foram sempre eles. Eles – das mais palavras mais escutadas neste Heavy Light, sétimo disco de U.S. Girls, terceiro para a 4AD. A conotação feminista tem constituído grande parte do corpo de trabalho de Meg Remy, figura central do conjunto U.S. Girls, oriundo de Toronto, mas vai mais longe, vai à política, à hercúlea tarefa do que é tentar ser-se alguém nos dias que correm.

Gravado em Montréal – com uma orquestra de colaboradores onde se conta Jake Clemons, saxofonista da E Street Band – este é um disco que mete uma mudança abaixo quando comparado com a maior agitação das água que Remy propunha em In a Poem Unlimited (editado em 2018 e que constou em muitos tops de final de ano, que foi talvez o objeto de U.S. Girls mais consumido mundialmente). A bela turbulência é aqui substituída por uma leveza mais funk e soul, um regresso à simplicidade mordaz que sempre caracterizou a música da artista norte-americana, basta pensar no disco de estreia para a 4AD: Half Free (2015).

Belo exemplo desta teoria é a primeira canção, “4 American Dollars”, uma canção aparentemente leve, com uma zona de percussão a querer ser agradável, que contrasta com a ironia das palavras cantadas:

“Shake dice or shake your ass
We all do what we gotta do to pass
In this world where they say:
“It’s not personal, it’s business”
Moving numbers from account to count
Keeping secrets in an offshore fount
But my money is quick to count
I got four dollars to my name

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You can do a lot with four American dollars
You can do a lot with four American dollars
You can do a lot with four American dollars”

Tendo In a Poem Unlimited com um grito meio deslocado – ainda que tão, tão bem feito – este Heavy Light é como o regresso à direção seguida, a caminho de um lugar idílico, onde o mundo é um sítio de igualdade, tolerância, e, de preferência, sem capitalismo. Algo que não seja uma “State House (It’s a Man’s World)”, quinta faixa, que se serve apenas de um beat básico para nos oferecer um coro feminino que canta o cansaço de ser mulher neste universo. Antes desta, o primeiro de três interlúdios, “Advice To Teenage Self”, onde várias vozes sobrepostas dialogam com um “eu” adolescente numa viagem a um tempo do qual quase ninguém se orgulha.

“The Most Hurtful Thing” e “The Color of Your Childhood Bedroom” – os outros dois interlúdios – perseguem a mesma ideia do primeiro, a ideia de pessoas (Remy e outros elementos da banda e dos colaboradores que com ela fizeram este disco) a servirem-se da sua verdade, da sua vida, para partilharem frases que atiradas para um ficheiro de forma sobreposta – e com direito a ecos – sugerem uma conversa que não conseguimos acompanhar, vários ecrãs abertos ao mesmo tempo. E fala-se de coisas duras, as coisas mais dolorosas que já lhes disseram.

Não nos parece que seja por acaso, esta vontade de Meg Remy. Até aqui, a artista incorria muito na lógica de partir de personagens de filmes, livros, figuras ficcionadas que por si falavam, por si diziam as atrocidades que a própria não conseguia assumir que eram também suas, da pessoa extra-música (como se isso fosse possível). Em Heavy Light, Meg Remy está quase sempre em discurso direto, eu isto, eu aquilo. Ora isso é automaticamente um terreno muito mais fértil, justo, condizente com uma verdade qualquer que se quer que exista num mundo mais saudável.

E isto não deixa nunca de ser um confronto de Remy com o seu passado, com uma outra versão de si, ou pelo menos uma versão pertencente a um outro tempo – se bem que isto de dizer que os tempos vão mudando, que o passado é passado e nunca está no presente também tem muito que se lhe diga. Basta olhar a foto presente na capa do disco para ter mais certezas: vamos dizer que aquilo é Remy ao lado de si em criança. Se não é, paciência, falhámos. Mas essa é uma leitura bastante possível, que fortalece este mergulho na piscina do que já lá vai, do que já era. Se o passado é mesmo passado, porque é que está sempre a bater-nos à porta?

São perguntas como esta que Heavy Light levanta. Quando a vocalista de U.S. Girls regrava “Red Ford Radio”, a terceira faixa de Go Grey (disco 2010, quando ainda era uma artista lo-fi de fazer discos no quarto ou coisa parecida), deve querer dizer alguma coisa. Mais que não seja deve querer saber se o seu passado diz muito sobre si. E para tal máxima, mesmo que muitos livros digam que sim, o melhor é não acreditar. Não vá o passado tecê-las.