Muita gente por esse mundo fora pode já ter as suas despensas completamente forradas de papel higiénico mas parece que ainda há espaço para o novo item preferido de açambarcadores: a farinha. Nos últimos tempos, supermercados e estabelecimentos comerciais de todo o mundo têm sentido grandes dificuldades em manter as suas prateleiras apetrechadas de sacos deste produto. Apesar de produtores, revendedores e a própria United Nations’ Food and Agriculture Organization (FAO) garantirem que não há falta de matéria prima, o açambarcamento — ou “compras de pânico”, como dizem nos EUA — torna a escassez inevitável.

“O novo coronavírus criou o ambiente perfeito para pôr toda a gente a fazer pão”, lê-se num artigo do Washington Post. O distanciamento social, ao ter colocado meio mundo fechado dentro em casa, sem muito para fazer (em alguns casos), fez com que passasse a haver mais tempo e atenção para dedicar a artes e ofícios que de outra forma, numa vida agitada e sem horários, não seria possível. O pão é exemplo disso.

Martin Philip, um moleiro da zona de Vermont, nos EUA, contou ao mesmo jornal norte-americano que a sua marca, a King Arthur Flour, teve no mês de março um recorde absoluto no número de contactos feitos pelo seus seguidores nas redes sociais: em todo o ano de 2019 receberam 10 mil mensagens com dúvidas e sugestões  e só desde janeiro já vão nas 22 mil. “Acho que tudo isto faz-nos voltar a entrar em contacto com o instinto de cuidar dos outros e o pão está no centro disso”, explica.

A sua e outras marcas de farinha e fermento nos Estados Unidos têm estado frequentemente esgotadas tanto no comércio normal como no online. Deixou de haver matéria prima? Nada disso, pelo menos é o que dizem os especialistas. O problema é o açambarcamento. “A industria tem acesso aos cereais, tem a capacidade de produzir e dará aos seus clientes o que eles procuram o mais rápido possível. […] Posso dizer com toda a certeza que não há falta de matéria prima. […] aquilo que temos é um problema ligado à procura”, indica Robb MacKie, o responsável máximo da American Bakers Association.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Também em Itália tem havido uma corrida à farinha. GettyImages

Buck Vanniejenhuis, um dos dirigentes da Ardent Mills — o maiore moagem da América do Norte que têm unidades de produção um pouco por todo o Canadá e e EUA — disse à Reuters algo parecido: “A produção de farinha está a acontecer normalmente. As pessoas não devem ficar preocupadas com o fornecimento, esta escassez deve-se apenas a um problema de procura!” Mas então qual é o motivo desta corrida à farinha?

Cozinha terapêutica em tempos de isolamento

Samin Nosrat, a cozinheira e autora que protagoniza, entre várias coisas, o popular programa da Netflix “Salt, Fat, Acid, Heat”, aproveitou estes tempos de quarentena para lançar um pop-up podcast chamado “Home Cooking”. Nele, Nosrat e a sua co-apresentadora, Hrishikesh Hirway, respondem a questões colocadas pelos ouvintes sobre como cozinhar com criatividade com aquilo que estiver “perdido” nas nossas despensas: “O nosso objetivo com este podcast é apenas espalhar um pouco de alegria, talvez um pouco de knowhow culinário e apaziguar a ansiedade de algumas pessoas”, contou Nosrat à Vox. “É muito mais agradável e útil gastar energia a pensar naquilo que vou querer cozinhar mais logo, amanhã ou até na próxima semana do que depositar tudo isso num poço de ansiedade e preocupações”, acrescentou.

Também a Food Navigator USA, publicação com mais de 20 anos que se dedica a analisar assuntos relacionados com alimentação, cita uma empresa de compras online norte-americana, a Chicory, que nos últimos tempos registou um aumento de mais de 120% nas encomendas de produtos básicos e fala num fenómeno social chamado “stress baking“, ou seja, fazer pão e bolos como forma de responder ao stress da época que se vive.

[Uma receita muito simples para se fazer pão em casa]

A cozinha como forma de lidar com a ansiedade e o stress é um fenómeno bem documentado, conta o Washington Post. As pessoas tendem a sentir que a atenção dada à confeção de um prato é reconfortante e a organização de tarefas necessárias para o fazer podem oferecer uma sensação de controle e satisfação. A professora de psiquiatria da Universidade de Michigan Michelle Riba contou ao mesmo jornal norte-americano que tem aconselhado os seus pacientes — principalmente os que são prestadores de cuidados de saúde — a construir rituais no seu dia a dia que tragam prazer e conforto. “No momento, estamos a precisar de fazer coisas muito básicas”, disse. “A panificação é um ato bastante básico, é uma coisa muito terrena”, reforçou.

Dado que muitos dos canais que normalmente usamos para exteriorizar o stress e a ansiedade foram interditados (passear, ir ao ginásio, estar com os amigos,…), fazer pão é algo relativamente barato e mais saudável do que outros mecanismos de defesa como a beber, conta a mesma professora. Além disso, o resultado final é melhor do que uma ressaca: “Há uma recompensa muito boa! Comida!”.

Isto também acontece em Portugal?

Qualquer pessoa em Portugal que tenha acesso a redes sociais seguramente já se cruzou com um, dois, três ou quatro amigos/conhecidos que partilham publicações onde mostram o pão que acabaram de fazer ou bolo que acabou de sair do forno. A cozinheira Filipa Gomes, por exemplo, partilhou há umas semanas na sua conta de instagram uma receita de pão muito simples que desencadeou o #pãodemia, um movimento que pôs centenas de portugueses a fazer pão em casa — tanto anónimos como famosos, veja-se o exemplo da fadista Gisela João, a atleta Jéssica Augusto e até a chef Ana Moura. Exemplos como este multiplicam-se, vários cozinheiros profissionais vão partilhando as suas receitas, e de repente aquele colega da faculdade que nunca conseguiu estrelar um ovo está a mostrar o pão alentejano que acabou de fazer. É inegável, então, que por terras portuguesas também tem havido um boom de panificação caseira.

A portuguesa Cerealis diz estar a trabalhar muito mais e chama a atenção ao cuidado que é preciso dar ao setor agrícola português. D.R.

A Cerealis é um grupo português dedicado à área agroalimentar especialmente focalizado em produtos cerealíferos que em média, por ano, transforma 480 mil toneladas de cereais. Ao Observador, fonte oficial da empresa diz que nos últimos tempos têm “sentido um aumento significativo da procura de farinha de usos culinários (farinhas para consumo dentro de casa)” e que, por causa disso, têm embalado essas mesmas farinhas a um ritmo “acima do que é normal”, de forma a “responder à procura dos nossos clientes”. Apesar de todos os “constrangimentos e tensões” implícitos à conjuntura atual, a capacidade produtiva desta Cerealis mantém-se… Por enquanto.

É reportada uma “incrível adesão das centenas de trabalhadores do Grupo” que “diariamente” têm garantido “a descarga dos cereais, a produção, embalamento, expedição dos produtos, controlo de qualidade, implementação e controlo das medidas de higiene e segurança”. Pessoal da área administrativa, por exemplo, até se tem voluntariado para ajudar nas operações. O problema — que por enquanto não existe mas pode ser uma realidade num futuro próximo –, prende-se com o fornecimento de matéria-prima base. “Não deixamos de estar fortemente preocupados”, revela a mesma fonte. A exigência extra que lhes tem sido imposta exige um ritmo de trabalho pode vir a ser prejudicado se os produtores na base da cadeia não forem apoiados.

“É importante que a fileira do setor agro industrial venha a ter um tratamento, no que diz respeito às regras e exceções em vigor neste estado de emergência, similar às do setor da saúde”, explica. As fortes restrições que têm sido aplicadas um pouco por toda a Europa (Portugal incluído), fazem com que a importação de matéria-prima seja mais escassa e dispendiosa por isso “a manutenção da oferta nacional de produtos alimentares é e será crucial”, ressalva.

Vários supermercados portugueses confirmam a maior procura por farinha.

Noutro extremo desta cadeia alimentar, no lado das grandes superfícies, todas, de um modo geral, confirmam uma procura muito maior por “bens essenciais”, entre os quais a farinha. Ao Observador a Sonae MC (do Continente) assume ter assistido “a um aumento substancial” na procura por  “todos os produtos de bens essenciais onde se incluem também as farinha de trigo” e que, por isso mesmo, têm “ativado todas as soluções” que permitem “responder positivamente a esta procura” junto dos seus parceiros de negócio. Posto isto, garantem, a cadeia de abastecimento está “assegurada com normalidade.”

O Pingo Doce também confirmou ao Observador que nos últimos tempos tem assistido a um crescimento da procura de farinha —  “mas sem qualquer problema ao nível dos stocks” — e a Mercadona confirma o mesmo, tanto a parte do aumento da procura como a do mesmo assim conseguirem “reabastecer diariamente”.

Quando isto tudo acabar teremos um aumento no número de padeiros e padarias? Talvez, quem sabe — a tendência do pão dito artesanal já existia em força antes da pandemia se instalar. Duas coisas, porém, são certas: primeiro é importante ressalvar que apesar dos constrangimentos inerentes ao estado de emergência, ainda há muita farinha para vender, não é preciso encher uma despensa com vários pacotes; depois, se puder (e enquanto puder), vá-se aventurando nesta área da padaria caseira com conta peso e medida, isto porque se o fizer é provável que o tempo que ainda faltar até chegarmos à luz ao fundo do túnel passe de forma mais rápida e subtil.