Numa altura em que o impacto da pandemia de Covid-19 continua a ser analisado, foram poucos os setores da sociedade que escaparam a algum tipo de efeito. A saúde não foi exceção. Médicos de todo o mundo enfrentam diariamente novos desafios e tiveram também de se adaptar às novas circunstâncias, incluindo uma transformação digital que foi imposta mais cedo do que poderia ser esperado. No mundo das startups de saúde — e ao contrário de grande parte das áreas que pode ter sofrido um impacto negativo — a pandemia acabou por levar a novas oportunidades e ao acelerar de ideias que tão cedo não seriam aplicadas, face às necessidades que foram surgindo.

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Foi o caso da Tonic App, uma startup portuguesa que disponibiliza uma app destinada a ajudar a comunidade médica a diagnosticar e a tratar os seus doentes e que deu um salto durante a pandemia, mesmo tendo em conta todo o cenário negativo que surgiu. “Apesar de estarmos também a viver uma crise médica, as empresas que estão na área da saúde sabem que podem ter um papel importante a desempenhar durante esta crise e a verdade é que se tivéssemos mantido o produto tal como ele estava no início, em fevereiro, tínhamos tido uma perda grande de engagement e mesmo de parceiros”, conta ao Observador Daniela Seixas, fundadora e presidente desta startup.

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No primeiro semestre deste ano, a Tonic App duplicou o número de parceiros e está a 20% de cumprir os seus objetivos de vendas para este ano, um passo que, segundo Daniela Seixas, se deveu ao facto de a startup ter procurado sempre responder às necessidades que os médicos iam sentindo durante a pandemia. Em maio, por exemplo, a Tonic App passou a dar acesso também acesso à plataforma DynaMed, que partilha informação clínica atualizada sobre a Covid-19 para os profissionais de saúde.

“Criamos uma série de recursos dedicados à Covid-19, não só na área dos conteúdos, trabalhamos com outros parceiros tecnológicos e até com iniciativas sociais que surgiram, como plataformas de alojamento gratuito e plataformas de transporte gratuito. Trabalhamos com esses parceiros e produzimos nós os nossos próprios conteúdos para ajudar os médicos nesta fase”, refere Daniela Seixas. Com as novas ideias alavancadas, acrescenta a responsável, 40% de todo o consumo digital dos médicos com a startup em março e abril foi apenas para recursos relacionados com a Covid-19, que foram adaptados em duas semanas.

Para perceber o verdadeiro impacto que esta pandemia teve na área da Medicina — e assim perceber também a melhor forma de agir — a startup realizou um estudo mais aprofundado sobre o tema e falou com mais de 500 médicos que integram a sua comunidade, em parceria com a IQVIA, uma multinacional da área da ciência dos dados.

Conclusões: 99% dos médicos inquiridos diz que a sua vida profissional foi afetada pela pandemia e 76% dos profissionais de saúde afirma querer manter a transformação digital que foi imposta durante este período, nomeadamente nos cuidados aos doentes através da telemedicina.

“As mudanças que foram introduzidas nos cuidados de saúde foram tão grandes, tão dinâmicas e tão rápidas que nós achamos que tínhamos que estar muito cientes de qual era a direção das transformações e ainda estamos a acompanhar”, explica a fundadora da startup, acrescentando que um dos aspetos mais importantes do estudo passa pelo impacto da transformação digital, que foi acelerada durante o período de confinamento. Agora, sublinha, é preciso mais investimento.

Os médicos mostraram muita vontade em manter parte da sua atividade no digital. Mas se, por um lado, muitas das alterações que surgiram durante o período de confinamento estão para ficar, nomeadamente em relação à telemedicina, a verdade é que para os médicos terem acesso a algumas das plataformas necessárias para se reorganizarem nos cuidados de saúde é também necessário investimento. E acho que se esse investimento não for feito no Sistema Nacional de Saúde o mais cedo possível, sobretudo se a infeção Covid-19 ainda permanecer connosco durante os meses de inverno, pode ser muito difícil fazer face à pandemia, mantendo a digitalização necessária para que as operações sejam fluídas”, acrescenta Daniela Seixas.

Dentro da transformação digital, refere o estudo da Tonic App, os médicos acabaram por utilizar outros meios para contactar com os seus pacientes, como é o caso do email, telefone e mensagens de texto (62%). Também a prescrição eletrónica e o envio de receitas através de SMS aumentou para 56%. Ainda assim, alerta a startup, “apesar de apoiarem em larga maioria esta transformação digital, os médicos não desvalorizaram uma medicina humanizada, referindo preocupação, por exemplo, quanto à redução da atividade da medicina de proximidade”.

Daniela Seixas, fundadora e presidente da Tonic App

Um dos efeitos da transição digital passou precisamente pelo aumento da utilização da própria Tonic App. Desde que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia, a 11 de março, o aumento de utilização da app foi de mais de 270%, de acordo com os dados fornecidos pela startup. Ao mesmo tempo, a equipa trabalhava à distância e tentava também adaptar-se aos novos tempos e ao trabalho que ia surgindo. “Manter esta intensidade de trabalho no meio de tanta pressão e mesmo de risco individual não é fácil. Também isso tem de ser acautelado. É necessário investimento, mas também pensar que o esforço que coletivamente foi feito por todos os profissionais e em todas as áreas pode não ser sustentável a nível individual nos próximos meses”, alerta a responsável.

Um novo produto e a expansão na Europa

Depois de um período de confinamento, a equipa da Tonic App está de volta ao trabalho presencial e a desenvolver o próximo produto, que deverá ser lançado em setembro: a Tonic Desktop. “Vamos lançar a Tonic Desktop para que os médicos possam também, no conforto do computador profissional, utilizar a Tonic sem a necessidade de irem ao smartphone“, explica Daniela Seixas. O produto vai ser lançado primeiro em Portugal e, se o piloto correr bem, será depois colocado no mercado espanhol até ao final do ano.

No fundo, a Tonic Desktop terá ferramentas diferentes da Tonic App, mas mantém o objetivo de ajudar os profissionais de saúde com os diversos conteúdos: “No desktop centramo-nos mais nas ferramentas propriamente clínicas — como calculadoras médicas, árvore de decisão de diagnóstico e tratamento e motores de busca especializados. Para a Tonic App temos outros recursos que não são propriamente clínicos, mas que também são de interesse profissional para o médico, como por exemplo a pesquisa de emprego médico e as notícias de saúde que nós resumimos todas as semanas”.

Outra das prioridades que a Tonic App estabeleceu é a expansão para outros mercados europeus. Em junho, a startup entrou em Itália e França e tem visto um crescimento da sua presença em Espanha. Segundo os dados recolhidos pela empresa, em Espanha, onde a taxa de infeção foi o dobro da portuguesa e a taxa de mortalidade aproximadamente cinco vezes superior durante março e abril, “os médicos usaram a aplicação nove vezes mais”. A equipa da Tonic App cresceu também para 16 pessoas, sendo o objetivo crescer para as 20 até ao final do ano e levantar ainda uma ronda de investimento para acelerar a expansão na Europa.