Camilo Pessanha era um homem belo, com um rosto, em especial através dos olhos, que parecia saber comunicar os mistérios de um universo inteiro sem precisar de dizer uma palavra. Apesar de a sua poesia simbolista o aproximar de Mallarmé, Verlaine ou Rimbaud, nada havia nele de decadentista. Apesar da magreza, do ópio e outras torres de marfim, era mais um dandy que um rebelde. Uma sua aluna, no liceu de Macau, contou ao investigador brasileiro Paulo Franchetti que nas aulas gostava de se sentar na fila da frente para sentir o perfume que emanava do lenço que ele usava na lapela do casaco. De resto, tinha o costume de se apresentar com roupas de bom corte. A beleza não é no entanto a chave para entrar neste mundo fechado de Pessanha, mas sim a nostalgia, o exílio, a dor, a melancolia.

Clepsydra, palavra que convoca um estranheza anacrónica, era o nome dado a um milenar instrumento movido a água que media a passagem do tempo. Uma versão mais complexa da ampulheta de areia, mas sempre a passagem do tempo, a fugacidade do presente, tão efémero e vil como uma imagem que nos atravessa a retina e desaparece para sempre, o passado como exílio, mas também como esquecimento, fatuidade da nossa passagem sobre a terra.

Foi este o nome que Ana de Castro Osório deu ao conjunto de poemas de Pessanha que conseguiu reunir e que publicou em julho de 1920. Um livro único de um poeta genial, que sempre esteve mais preocupado com a escrita, a palavra, a procura de dizer o que ainda não era pensamento, lógica, razão, mas um fugaz pressentimento, uma imagem ainda sem nome, nem lugar. Dizíamos que sempre esteve mais ocupado a observar o mundo a partir de dentro dos seus olhos de periscópio do que em procurar a gloria da publicação. Não que não tivesse um enorme orgulho na sua poesia, e desde a adolescência projetava escrever um livro, mas, ao mesmo tempo alheava-se de tudo, partia para as suas “torres de marfim” e escrevia: “Floriram por engano as rosas bravas”, evocando a falta de sentido que ele encontrava na vida.

Pessanha parte em 1894 para Oriente, será um dos muitos poetas e escritores exilados que guarda a história, e desse exílio, como lugar estranho, a omnipresente sensação de não pertença será um dos principais motivos da sua poesia

Clepsydra não é um livro feito por Camilo Pessanha, como O Livro de Cesário Verde também foi feito por outra pessoa que reuniu, organizou e publicou os poemas em livro. Franchetti, o investigador brasileiro, especialista na obra de Pessanha, com quem o Observador falou via email, conta assim a história desta obra tão breve quanto densa, tão aparentemente fechada quanto aberta ao universo:

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“Camilo Pessanha planejou, desde jovem, a publicação em volume dos seus poemas. Mas não nos restou nenhum documento sobre como seria esse livro, nem mesmo sobre quais textos o integrariam. Em 1915/1916, quando esteve em Portugal pela última vez (faleceria em Macau em 1926), foi instado por Ana de Castro Osório, sua amiga e paixão de juventude, a reunir seus poemas para publicar em volume.

Camilo Pessanha concordou e redigiu, de memória (como fez questão de anotar ao datar os textos), uma série de poemas. Mais que isso, redigiu uma lista – um tipo de índice numerado em [números] romanos – do que seria o livro, em forma final. Essa lista se perdeu em grande parte. Restou dela apenas um fragmento. Pessanha prometeu enviar de Macau a versão definitiva dos poemas, bem como os que faltavam na transcrição de memória. Mas nunca o fez.

Em 1920, Ana de Castro Osório resolveu publicar o que tinha em mãos: os autógrafos de 1916 e outros poemas que encontrou em jornais ou lhe foram passados por terceiros. Por alguma razão, não utilizou a relação que Pessanha deixou com ela, nem respeitou a indicação de agrupamento de sonetos em duplas, marcadas nos autógrafos. Além disso, dividiu o livro ao meio, separando de um lado sonetos e de outro poemas em forma livre. Ora, essa maneira de dividir um livro segundo a forma dos textos fora duramente criticada por Pessanha, a propósito de um livro de seu contemporâneo. Por isso, mesmo, não é crível que ele usaria o mesmo procedimento na hora de estruturar sua própria obra.

À medida que passaram os anos, depois do falecimento do poeta e de Ana de Castro Osório, o filho dela, João de Castro Osório, foi juntando à recolha de 1920 poemas que ia descobrindo em revistas e jornais ou que lhe eram trazidos por outras pessoas. Assim, o volume foi crescendo até 1969, que foi a última edição de Castro Osório.

Edição original reunida por Ana de Castro Osório, em 1920

Chamei à Clepsydra ‘o livro que nunca existiu’ num sentido específico: para indicar que o livro de Pessanha nunca se materializou conforme a vontade do autor, conforme seu projeto e por sua iniciativa. Ana de Castro Osório foi, nesse sentido, cuidadosa: não colocou o nome do autor no alto  da capa e o nome do livro abaixo, como de costume. Preferiu apresentar assim: Clepsydra – poemas de Camilo Pessanha. Foi a mesma solução que Silva Pinto usou para editar os poemas de Cesário Verde. E o mesmo que Oliveira Martins fez, ao publicar os Sonetos Completos de Antero de Quental.

A Clepsydra de Camilo Pessanha são várias Clepsydras. Por esse nome designamos as recolhas e edições várias que se foram fazendo ao longo do tempo. É uma coleção possível. Não é um livro autoral, no sentido, por exemplo, que o Oaristos, de Eugénio de Castro, ou o , de António Nobre são. Resumindo: a Clepsydra de 1920 é uma recolha ou antologia dos versos de Pessanha organizada por Ana de Castro Osório”.

Ana de Castro Osório, escritora, jornalista, feminista, terá sido o grande amor de Camilo Pessanha

Portugal alheou-se deste centenário e a versão mais recente deste livro foi publicada em três edições bilingues (castelhano, inglês e francês) pela Lisbon Poets&co. A edição foi organizada por Franchetti, tem um bom prefácio de Helena Buesco e ilustrações de André Carrilho. Mas vivemos tempos pouco dados a subtilezas e muito menos a poesia simbolista, onde cada palavra tem o peso e o fulgor de um totem. Onde o aparente hermetismo abre para o universalismo da condição humana. Sabemos que geração após geração o domínio do vocabulário parece encolher, as palavras perdem os seus vários e potenciais significados, alusões, latência para serem uma coisa cristalizada como um nome próprio. A poesia que se lê e publica hoje em Portugal não poderia estar mais longe de Camilo Pessanha e, no entanto, quem o faz nunca mais sentirá na boca uma Língua semelhante à palha, mas sim a um rio, sempre antigo, sempre novo.

Paulo Franchetti mostra que lá porque o hermetismo e o simbolismo ganharam um sentido pejorativo este é um poeta que deve continuar a ser lido, decifrado, amado e não apenas a propriedade de alguns académicos: “Há várias formas de ler Pessanha. A música dos seus textos, por exemplo, pode ser apreciada quase que independentemente do sentido das palavras que a compõe. A maior parte dos seus poemas é tão fragmentária, tão pouco narrativa ou discursiva, que o leitor pode encontrar ali ecos e ressonâncias de suas próprias preocupações. Creio que a melhor forma de ler Pessanha hoje é lê-lo de modo fragmentário, tal como seu livro se apresenta: partes sem um todo organizado, sugestões, ritmos que conduzem e embalam. Como quase toda poesia: não o que diz, mas como diz”.

A vida como o grande exílio

Camilo Pessanha nasce em plena revolução industrial que, apesar do atraso, também se fazia sentir  em Portugal. Filho de um aristocrata e da sua empregada, estudará direito como o pai e ainda trabalha uns anos em Portugal antes de partir para Macau, num auto-exílio que duraria toda a sua vida e marcará indelevelmente a sua obra.

Parte em 1894 para Oriente, será um dos muitos poetas e escritores exilados que guarda a história, e desse exílio, como lugar estranho, a omnipresente sensação de não pertença será um dos principais motivos da sua poesia. Não se revia na Europa fragmentada pela máquina, nem na arte naturalista e realista que pontificava no seu tempo, nem no positivismo, nem no triunfo da ciência. Mas também não se revia no Oriente (apesar de mais tarde ter desenvolvido um a enorme paixão pela cultura chinesa). É um pessimista, assolado pela ideia da morte, não no sentido místico dos românticos, mas como perda da inocência.

Foto com outro  escritor português exilado, Venceslau de Morais  (Japão) os filhos deste. Camilo é o da direita

Para Pessanha, nem a fé, nem a razão podem salvar o homem das trevas. Paulo Franchetti descreve-o assim:

“Não era uma pessoa de relacionamento fácil. Extremamente orgulhoso, era também pouco respeitador das convenções sociais. No ambiente acanhado da comunidade portuguesa de Macau, causava escândalo o fato de ser usuário de ópio e viver publicamente amantizado com uma chinesa. Mas quantos outros portugueses do tempo e com alguma proeminência no território não teriam comportamentos semelhantes? Do meu ponto de vista, o que contribuiu decisivamente para a lenda do poeta e homem maldito foi o grande número de inimigos que foi fazendo ao longo do tempo em Macau, como advogado e juiz. E isso não por seus defeitos no campo, mas justamente por suas qualidades e inflexibilidade de caráter.

Por outro lado, Pessanha nunca demonstrou respeito pela religião, nem se dedicou à sua prática social, e era republicano fervoroso. Isso também contribuiu, creio, para alimentar o ódio de alguns difamadores contumazes. A enfraquecer as inverdades todas, há fatos evidentes: o seu enterro foi muito concorrido e prestigiado e em prazo muito curto, cerca de um mês depois, seu nome batizou uma rua de Macau. Fosse ele a figura maldita que depois se tentou pintar e isso não teria acontecido (…).

Houve ruturas na sua vida, claro: ele não conseguiu se adaptar ao meio jurídico português, nem mesmo ao de Macau, tendo sido inclusive surrado na rua por afrontar os interesses escusos de algumas pessoas da colónia. Decidido a mudar-se e tentar a sorte no além-mar, pensou primeiro em ir para África, mas terminou por mudar-se para Macau, por conta da abertura de um concurso para professor no Liceu. Os caracteres mais românticos insistem até hoje que o motivo da mudança foi a desilusão amorosa, com a recusa de Ana de Castro Osório a uma proposta de casamento. Entretanto, já bem antes da tal proposta, Pessanha manifestava o desejo de emigrar.

O dado mais interessante sobre o exílio de Pessanha é algo que vem sendo ignorado e, mais do que ignorado, deturpado: sua dedicação à cultura chinesa, seu esforço contínuo por dominar o idioma, sua voracidade de colecionador. Um amigo, Carlos Amaro, relata que viu, em certa visita de Pessanha a Lisboa, mais de mil páginas de textos chineses traduzidos. Isso tudo se perdeu. E há quem diga e repita, impudentemente, as bobagens sobre o poeta não saber chinês, ser um abúlico etc”.

A mais recente edição de Clepsydra é de 2019, pela Lisbon Poets & co. Na foto a edição em português /inglês. PVP: 16.80

Pessanha, uma constelação na poesia portuguesa

É impossível falar de Camilo Pessanha sem passar pelos veios de modernismo que ele abriu no simbolismo ou em qualquer gaveta teoria onde o tentem confinar. Fernando Pessoa e Sá-Carneiro, o Orfeu, são apenas alguns dos que foram influenciados, curiosamente, por poetas discretos e sem obra publicada, como Pessanha ou Cesário, o que mostra que, ao contrário do que nos diz a nossa época, há futuro para aqueles que procuram as gemas mais raras dentro da pedra mais dura e fria. Helena Buesco, no prefácio da edição dos Lisbon Poets&co, aponta que há em Pessanha uma “espécie de narrativa alegórica no interior da sua poesia e a perceção de que “a existência humana é um processo de despersonalização” e isto evidência o modernismo do poeta e a sua influencia no grupo Orfeu.

Mas, ao contrário de Pessoa, dos modernistas, dadaístas ou surrealistas, Camilo Pessanha não tinha um dinamismo ou a revolta, mas sim uma “apatia” fruto de uma deceção que lhe roía a alma, mas que o levou a fazer coisas únicas na poesia portuguesa, como por exemplo, incorporar nesse simbolismo/modernismo uma imagética medieval, a transitoriedade, o conhecimento e a humildade como as únicas coisas válidas, e aqui ele aproxima-se de Mallarmé ou Verlaine: só importa o gera o espírito livre.

Talvez por isso ele soubesse que livros e fama não servem para nada se não forem fruto de uma humildade. Ele recusa, diz-nos Buesco, que o poeta sirva para “aliviar a vida”, ideia tão comum na comunidade internauta portuguesa. Pessanha sabe bem que o poema não ensina a cair, não ensina nada e o poeta e a poesia só servem para que a pedra carregada por Sísifo seja ainda mais pesada.

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, – meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, – tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe… Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

[Camilo Pessanha]

Talvez falando de si, talvez de um Cristo humano, demasiado humano, a verdade é que, este que é um dos mais famosos sonetos de Camilo,  mostra que a escrita não passa sem essa voz muda das coisas que lhe abre novos sentidos e onde cada vocábulo é um caminho aberto à subjetividade e à imaginação do leitor.

Camilo Pessanha morre, em 1926, de tuberculose. Não voltara a Portugal desde 1916, quando ditou os poemas a Ana Castro Osório. O seu espólio, que inclui uma enorme coleção de arte chinesa, está no museu Machado de Castro, em Coimbra.