A história de uma fortuna pode ser rocambolesca. No caso de Tony e Maureen, o natural desenrolar de acontecimentos e circunstâncias colocou o casal entre os mais bem sucedidos empresários do setor das publicações de viagens. A epopeia em causa começou há sensivelmente 50 anos. Em 1973, os Wheeler publicaram o primeiro guia da Lonely Planet.

Ela chegou a Londres com apenas 20 anos. Recém-chegada de Belfast, foi num banco de jardim, em Regent’s Park que encetou conversa com Tony, o futuro marido e parceiro de negócio. O tema? Num tópico inaugural praticamente profético, viagens. Ele, quase quatro anos mais velho, já conhecia mais mundo. O pai trabalhava como gestor de aeroportos para a British Airways, profissão que fez com que Tony crescesse em contextos tão diferentes como Paquistão, Bahamas, Canadá e Estados Unidos, além de Inglaterra.

As primeiras viagens a dois não foram para longe, até que, já casados, embarcaram na aventura que lhes mudaria a vida. Popularizada sobretudo nos anos 60, a rota hippie era um espécie de iniciação para os espíritos livres da época. Do Reino Unido e de vários pontos do centro da Europa, centenas faziam-se à estrada, sempre por terra, rumo à Índia, e com passagem obrigatória pelo Nepal.

Lonely Planet Guide Books Founders, Maureen and Tony Wheeler at their office in

Maureen e Tony Wheeler, no escritório da Lonely Planet em Melbourne, março de 1998 © CATHERINE TREMAIN Fairfax Media via Getty Images

E o caminho fazia-se à luz da filosofia desta subcultura, com um natural desapego pelos confortos da civilização ocidental, numa altura em que a expressão “gap year” ainda não tinha sido inventada, como Tony brincou um dia. A meta estava traçada: um ano a viajar pelo mundo, passar três meses em Sydney e depois regressar a Londres. Entre a capital britânica e o Afeganistão, o caminho foi feito numa carrinha, como o casal já contou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Alcançaram o destino em 1972, mas no bolso, do orçamento da viagem, apenas sobravam 27 centavos. A proeza atraiu atenções e de tanto lhes pedirem dicas para a viagem, resolveram pôr tudo por escrito num guia. “Across Asia on the Cheap” (algo como: pela Ásia e em conta) foi publicado no ano seguinte. Na capa, com o preço de 1,80 dólares, constava apenas o nome de Tony Wheeler.

“O primeiro livro foi um acidente”

“O primeiro livro foi um acidente. Ambos tínhamos trabalhos a tempo inteiro na Austrália — eu estava a dirigir um estudo de mercado para a farmacêutica Bayer e a Maureen era assistente pessoal numa empresa de vinhos — e dedicavamo-nos a isso à noite e durante os fins de semana. Até que tirei um dia no trabalho e fui a algumas livrarias dizer que tinha escrito aquele livro e perguntar se queriam comprar algumas cópias. E compraram. Teve algumas boas críticas e vendeu 1.500 exemplares numa semana. E isso foi só em Sydney”, contou Tony numa entrevista ao The Guardian, em fevereiro de 2017.

“O dinheiro que fazíamos com um livro dava para pagar o seguinte”, admitiu ainda. Em 1975 o casal publicou “South-East Asia on a Shoestring” (qualquer coisa como: Sudoeste Asiático com pouco dinheiro”. Nessa altura, o nome Lonely Planet já circulava, inspirado por uma canção de Joe Cocker (“Space Captain”) ouvida ao longe — o verso da música fala em “lovely planet“.

Capa do primeiro guia de Tony e Maureen: “Across Asia on the Cheap”

“Demorou até fazermos da Lonely Planet um negócio real. Nos primeiros nove anos, era apenas eu e o Tony. Fazíamos tudo: empacotávamos os livros e fazíamos os envios para todo o mundo, levávamos os livros para as livrarias e vendíamos, escrevíamos, montávamos, e até cheguei a paginar porque então não tínhamos computadores. Um dia entrei no escritório, percebi que tínhamos cerca de 60 pessoas e quase tive um ataque de pânico”, revelou Maureen Wheeler, numa entrevista à rádio espanhola RNE, em 2009.

Na mesma ocasião, Maureen chegou mesmo a mencionar o que considerava ser o uso correto de um guia Lonely Planet, um “primeiro impulso” que não deve ser seguido “como se fosse um mapa”. A capacidade de detetar o próximo grande destino parece ter acompanhado o casal na sua carreira de empresários viajantes. Numa outra entrevista, Tony chegou a dizer que, nos primeiros tempos, a pequena escala da editora lhe permitiu olhar para lugares dos quais as pessoas não queriam realmente saber. “Quando fizemos o nosso primeiro guia da Tailândia [no início dos anos 80], era um pequeno destino”, admitiu.

Com dois filhos (Maureen chegou a publicar um guia “Travel with Children”), o casal de classe média, habituara-se a contar o dinheiro para fazer face às despesas e para crescer sustentadamente, mas contados estavam os dias de hesitar nos investimentos. A editora cresceu, em notoriedade e em equipa, mas nada comparável com o salto que viria a dar em 1981, ano de publicação do guia “India”. “Com pessoas no escritório, pudemos estar fora durante seis meses. Eu e a Maureen, mais dois escritores, saímos com um adiantamento de mil dólares cada um para despesas. O livro que resultou daí era três vezes maior, três vezes mais caro e vendeu três vezes mais do que os títulos anteriores”, recordou Wheeler na mesma entrevista ao The Guardian.

Os anos seguintes foram gloriosos para a Lonely Planet. A empresa abriu o primeiro escritório nos Estados Unidos em 1984, em Oakland, Califórnia. Em 1991, menos de dois anos após a queda do Muro de Berlim, saía o primeiro guia dedicado à URSS. Em 1994, estreia o primeiro programa de televisão com o selo da editora. Em quase 50 anos de história, o mercado alterou-se, ou melhor, reinventou-se, no caso dos guias de viagens. “A competição é sempre uma coisa boa, mantém-te alerta. As marcas crescem e ganham nome hoje por causa da natureza instantânea da internet. Mas construir uma reputação continuar a demorar o seu tempo”, acrescentou Tony na entrevista de há três anos.

A Lonely Planet sem os Wheeler

Como qualquer negócio bem sucedido, este tornou-se demasiado sedutor para ficar nas mãos dos seus fundadores. Em 2007, a BBC Worldwide comprou 75% da editora por 88,1 milhões de libras, cerca de 130 milhões de euros à taxa de câmbio da altura, e, quatro anos depois, voltou à carga e comprou a restante quota da Lonely Planet Publications por 42,17 milhões de libras, cerca de 50 milhões de euros também à taxa de câmbio da altura. “As empresas são como bebés: crescem e têm de caminhar pelos próprios pés. Além disso, houve esta mudança para o mundo digital e eu gosto demasiado de livros. Gosto mais do papel do que dos ecrãs”, rematou Tony em 2017.

O casal terá usado parte da fortuna para criar a Planet Wheeler Foundation, organismo próprio cuja atuação diversa tem chegado a territórios como a Tanzânia, através do financiamento de uma escola, e a Etiópia, com um projeto que leva água potável à população. Segundo a página da fundação, desde 1987 que Tony e Maureen apoiam causas humanitárias através da doação de uma percentagem fixa dos lucros da empresa.

Um guia de viagens em tempos de pandemia

Rotina ou luxo, viajar foi um dos verbos mais interrompidos desde que, em março desde ano, o mundo assistiu à propagação de um vírus desconhecido. O setor ressentiu-se e os guias de viagens não foram exceção. Em abril, a empresa anunciou o encerramento “quase total” dos escritórios em Melbourne e Londres, onde trabalham cerca de 70 pessoas, na sequência do “impacto da Covid-19 na procura e nas vendas”.

Lonely Planet travel book founder Mauree

Maureen e Tony em 2006, cerca de um ano antes de venderem 75% da editora à BBC © LAURENT FIEVET/AFP via Getty Images

Segundo o jornal The Age, só na sede australiana da editora, 80 pessoas estariam prestes a perder o emprego. As decisões tomadas pela empresa afetariam ainda o funcionamentos dos escritórios nos Estados Unidos, na Índia e na Irlanda. Em comunicado, a Lonely Planet, atualmente detida pela norte-americana NC2 Media (negócio ruinoso para a BBC que, em 2013, vendeu a editora por 50 milhões de libras, o equivalente a cerca de 58 milhões de euros, perdendo 80 milhões, cerca de 93 milhões de euros), anunciou ainda a decisão de manter apenas os guias, pondo fim à publicação da revista com o mesmo nome e dos livros infantis.

“Estou triste por muitas razões. Ninguém sabe o que vai acontecer à indústria das viagens. Se não há mercado para entrar num avião, também não há mercado para guias”, admitiu Tony Wheeler à mesma publicação. Totalmente fora do comando da editora que fundaram, os Wheeler assistem de fora ao colapso do setor. “Eles [os guias] continuam nas prateleiras 50 anos depois, o que considero ser uma conquista. Se vão estar lá daqui a um ano? Não sei”.