Chegados ao último dia da ModaLisboa, os desfiles já foram mais do que suficientes para concluir que existem dois tipos de designers: os que atravessaram o confinamento e regressaram para contar a história através de uma coleção, ou os que apostam todas as fichas numa promessa de evasão, com cores, silhuetas e volumes que nos fazem esquecer, por momentos, que o mundo lá fora continua a lidar com uma pandemia. Refletir sobre o atual contexto ou criar uma realidade paralela — a moda tem ambos os poderes e os criadores portugueses dividem-se na abordagem.

Para Gonçalo Peixoto, não houve dúvidas. A sua passagem pela edição número 55 esteve envolta num sentimento festivo, tão excêntrico quanto uma imagem de Paris Hilton, rainha do night club em plena década de 2000. A referência não surge por acaso — é na socialite que o jovem designer personaliza o celebrity glam que serve de invólucro da coleção. Aberto o rebuçado, o que chegou à plateia do desfile foi uma overdose de açúcar.

Detalhe do desfile de Gonçalo Peixoto © Melissa Vieira/Observador

“Quis trazer uma coleção que nos levasse para outro sítio. Esse é o pedido que faço: que no próximo verão as coisas sejam como esta coleção — mais doces, mais livres e mais soltas”, começa por dizer, minutos após o final do desfile. Um antídoto para 2020, shot concentrado à base de vestidos justos, folhos, franzidos, transparências, lantejoulas e muito, mas muito cor-de-rosa.

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“O mais importante era criar um espetáculo, entreter”, prossegue. Conseguiu — a batida era contagiante, o casting tinha Maria Miguel e Isilda Moreira e na primeira fila estavam Bárbara Bandeira, Carina Caldeira e Rita Pereira, esta última a usar, em primeira mão, um dos blazers do desfile. Podia, na verdade, ter usado qualquer outra peça do guarda-roupa proposto por Gonçalo Peixoto. Afinal, todas as opções eram escandalosamente virais, um fogo-de-artifício que dispensou o fio de coerência de cores, padrões e materiais que normalmente une uma coleção.

Este é o Gonçalo Peixoto da passerelle, bem demarcado da faceta que define como “comercial”, sob a qual, durante o confinamento, se dedicou a lançar fatos de treino confortáveis. “A pandemia deu-me tempo para pensar e para reestruturar a marca. Foi aí que desenvolvi esta linha mais acessível para chegar a mais pessoas. Mas estes meses foram importantes a vários níveis. O online disparou 300%, mas também me deram destreza — precisei de dar coisas novas às pessoas todas as semanas, de encontrar influencers e manequins para me ajudarem. Tive de me mexer à séria como ainda não tinha precisado até aqui”, remata.

Tempo, calma e distanciamento. Os encantos da moda ao ar livre

Durante dois dias, a ModaLisboa abriu-se à cidade. Numa área de 6.500 metros quadrados, com uma lotação máxima de 300 visitantes e entrada gratuita (embora o registo prévio fosse obrigatório), o evento assumiu a forma de um pequeno festival, cuja principal missão foi aproximar a moda portuguesa de autor do público não especializado.

“A moda não são só os desfiles, é a forma como construímos a nossa identidade”, afirma Joana Jorge, diretora de projeto da ModaLisboa. Fala de um programa amplo, que no sábado e no domingo proporcionou à cidade um olhar alargado sobre o setor, incluindo assim conversas, uma seleção de marcas portuguesas a vender os seus produtos e apresentações de criadores nacionais, na maioria abordagens artísticas e experimentais do design de moda. A esplanada, as food trucks e uma zona de sofás sobre a relva também fizeram parte do pacote.

“Há aqui uma componente mais lúdica. É preciso tocar as pessoas de uma forma simpática, generosa e deixá-las ter um bom momento. Achamos que a semente vai ficar. Independentemente das escolhas que fazemos como consumidores, conhecermos os autores nacionais e podermos ter uma experiência mais próxima disso é sempre bom. Essa é a mensagem mais importante a transmitir”, remata, ao mesmo tempo que revela que, no sábado, 900 pessoas passaram pelo Resort, nome escolhido para o recinto.

Apresentação de Olga Noronha © Melissa Vieira/Observador

Durante os últimos dois dias, o Resort foi o complemento da passerelle principal. Workstation, a plataforma que dá visibilidade a cinco criadores em fase de experimentação e consolidação dos seus projetos, teve aqui o seu palco. De Saskia Lenaerts, que no sábado exibiu o resultado da transformação de fardas militares em casual wear masculino, a António Castro, responsável por reinterpretar os códigos de género às luz do barroco e do lado performativo do wrestling, passando por Opiar, Filipe Augusto e Archie Dickens, as apresentações dividiram-se entre os formatos físico e digital, o binómio que dominou a 55ª edição da ModaLisboa.

“Tendo em conta a nossa realidade, achámos que o modelo devia ser híbrido e que devia passar pelo físico. Primeiro, porque Lisboa e Portugal são abençoados com um clima que não é tão fácil em Londres ou Paris”, prossegue Joana Jorge.

Quem também passou pelo jardim da ModaLisboa foi Olga Noronha, depois de uma ausência na última edição. Com um conjunto de peças metálicas e imaculadamente brancas, a designer começou por restringir o corpo. As mesmas estruturas acabaram por incorporar ideais de desconfinamento e libertação, à medida que, de dentro delas, voaram aves autóctones. A performance contou com dezenas na assistência, no mesmo ambiente de descontração com que nomes como Raquel Strada, Gisela João e Branko se sentaram à conversa como parte de um ciclo de pequenas conferências.

“Temos consciência de que, mesmo depois de uma vacina, esta fase pela qual o mundo passou não vai desaparecer, vai ter consequências, umas menos boas, outras mais positivas. Reorganizámo-nos. As nossas apresentações são agora mais pequenas, mais mais focadas, com menos pessoas e mais intimistas, e isso é uma mais-valia. Há muito por explorar a nível da interação que podemos gerar com as pessoas e da informação que podemos passar sobre a moda portuguesa”, remata a diretora de projeto da ModaLisboa.

Carolina Machado e Hibu: casos de sucesso em tempo de pandemia

Na altura de desenhar a coleção para o próximo verão, a décima da sua carreira, Carolina decidiu que esta seria “uma espécie de best of“. A decisão foi meramente celebrativa. A marca tem escapado ilesa aos efeitos da pandemia, sobretudo por encaixar na perfeição nas novas exigências do mercado. “Não me posso queixar, as nossas vendas aumentaram. O mercado online está em expansão e acho que, cada vez mais, as pessoas não se importam de pagar mais por uma peça de qualidade, por um design exclusivo e para apoiar o design nacional”, responde ao Observador, poucos minutos após o desfile que inaugurou, este domingo, o jardim junto ao Pavilhão Carlos Lopes.

Desfile de Carolina Machado © Melissa Vieira/Observador

Através da própria loja online e de alguns marketplaces estratégicos, Carolina Machado, designer sub 30 natural de Leiria, está a ganhar terreno sobretudo no norte da Europa — com produção em Portugal, é na Finlândia, na Suécia e nos Países Baixos que as suas peças têm sido calorosamente recebidas. Agora, compor uma coleção recuperando moldes, materiais e acabamentos de estações passadas vem reforçar este mesmo apelo comercial.

A designer foi bem sucedida no exercício a que se propôs. “Memoir” traz ao de cima o melhor de Carolina Machado — as peças em tricot, as bainhas acima do joelho, cropped tops e a alfaiataria trabalhada com leveza e fluidez. “Inspirei-me em peças que vendi bastante bem e é sempre bom termos uma versão mais moderna ou noutra cor. Se resultou antes, por que é que não há-de resultar outra vez”, refere.

Carolina dá detalhes sobre o processo, que obviamente começou com o confinamento. “Peguei em detalhes de peças antigas, em moldes e até em tecidos que acabei por nunca utilizar. Durante a pandemia, tive bastante tempo para refletir sobre o meu trabalho e sobre o que iria fazer a seguir. Normalmente, as minhas inspirações são sempre relacionadas com viagens ou com cultura — concertos, música, espetáculos, teatro. Não havendo isso, achei que seria engraçado fazer uma espécie de best of de tudo o que já tinha apresentado para trás”, explica.

Marta Gonçalves, a designer à frente da Hibu, foi outro dos nomes a preencher o calendário deste domingo. A partir de uma base criada há precisamente um ano, altura em que ressuscitou a marca e retomou as apresentações sazonais, reconstituiu um verão analógico, inspirado em memórias dos anos 90, década que vivenciou em criança. “Os verões eram intermináveis. Tínhamos três meses de férias, mas parecia um ano inteiro”, recorda.

Desfile da Hibu © Melissa Vieira/Observador

“Tivemos todos um momento de reflexão e usei esse momento para perceber que perdemos muito tempo ligados às redes sociais”, afirma Marta, ao mesmo tempo que se identifica com o tal primeiro grupo de designers, sem evasões, assumindo um ano amargado pela pandemia. Das gangas pespontadas às malhas estivais, perseguiu “referências reais” — as verdadeiramente  suas — em oposição às que estão à distância de um motor de busca.

Questionada sobre a viabilidade de um desfile, Marta admite a hesitação, mas não pelos motivos mais óbvios. Em plena crise, os projetos não lhe deram descanso — “coleções para hotéis na Suíça, restaurantes portugueses e o projeto Moche”. “Só me questionei por poder não ter tempo de apresentar algo com que me sentisse satisfeita”, admite. O verão de 2021 da Hibu viu a luz do sol, nas brechas de um ano concorrido, contra todas as expectativas.

Carlos Gil, o luto inevitável

“Não apresentar seria uma sensação de perda”, afirma o designer a quem coube encerrar esta edição 55 na ModaLisboa. Em qualquer outra, Carlos Gil teria desfilado no final da noite, mas não nesta. Sob o sol do entardecer, apresentou uma coleção em tom de tributo a Portugal. Não se mostrou indiferente ao momento, pelo contrário. Destaca o número de coordenados negros, um luto inédito que percorreu a passerelle lado a lado com um amarelo vivaz, lembrete de que a retoma virá, para este e para outros setores.

Desfile de Carlos Gil © Melissa Vieira/Observador

“Daqui a uns anos, tenho a certeza absoluta de que não há uma cliente minha que não tenha comprado uma peça para identificar este momento”, acrescenta. Dos monumentos nacionais, que estampou em vestidos, blusas e calças, ao padrão preto e branco, que o próprio apelida de desconfinamento, Carlos Gil é, à semelhança da maioria dos designers portugueses, responsável por manter à tona esta frente criativa que dá a cara pelo setor. Para março do próximo ano, data em que se espera uma nova edição da ModaLisboa, não há respostas certas, apenas a certeza de que, no que há moda diz respeito, não há territórios estéreis.

Na fotogaleria, veja as imagens dos desfiles que marcaram o último dia de ModaLisboa.