Não é à toa que, em inglês, aquilo a que vulgarmente chamamos de intuição, pressentimento ou emoção visceral se denomina informalmente como “gut feeling”. “O sentir do intestino”, numa tradução literal, remete para a importância que este órgão parece ter em alguns comportamentos que não conseguimos explicar racionalmente. Na última década, porém, houve mais uma coisa que se compreendeu: o microbioma – o conjunto de micróbios que vivem no nosso intestino – afeta o comportamento do seu hospedeiro: os seres humanos.

Os indícios de alguns estudos académicos dos últimos anos sugerem mesmo que desequilíbrios nestas bactérias podem afetar o funcionamento do nosso cérebro, contribuindo para distúrbios como o autismo e a depressão. Mas o que Carlos Ribeiro, investigador principal da Fundação Champalimaud, está a tentar perceber é como é que estas bactérias intestinais podem decidir por nós o que comemos – e para isso está a conduzir estudos com a mosca da fruta em laboratório.

“A genética molecular mostrou que, apesar de sermos muito diferentes por fora, a base dos mecanismos e sistemas essenciais que controlam como o corpo funciona é idêntica em todos os animais”, diz o investigador. É por isso – e apesar de poder causar perplexidade – que moscas da família drosophilidae podem fornecer pistas sobre o comportamento humano. É que elas têm muitas semelhanças connosco, apesar de pouco visíveis.

“Por exemplo, a maioria dos genes associados a doenças no ser humano também existem na mosca da fruta. Isso quer dizer que podemos descobrir muitas coisas nesse organismo mais simples que têm uma relevância muito grande para os humanos”, explica Carlos Ribeiro.

No caso dos comportamentos alimentares, basta pensar que a ingestão de nutrientes que fazemos é um dos fatores mais determinante da saúde e da doença. A obesidade, por exemplo, é uma condição considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma epidemia e afeta tanto a longevidade como a qualidade de vida.

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“Já descobrimos, há alguns anos, que há duas bactérias – a Acetobacter pomorum e Lactobacilus plantaurum – que alteram completamente os desejos alimentares da mosca da fruta quando estão dentro do seu intestino. Habitualmente, quando as moscas da fruta estão grávidas ou ficam sem comer proteínas por muito tempo, têm um desejo muito grande de as consumir. Se tiverem estas duas bactérias, não têm nenhuma ânsia de proteínas. O que estamos a tentar entender são os mecanismos de causalidade entre uma coisa e outra.”

Para tentar perceber como é que isto acontece, o investigador recebeu em 2018 um financiamento de mais de 450 mil euros ao abrigo do Concurso Health Research da Fundação La Caixa [ver informação no final do artigo]. “Nesse projeto estamos a utilizar um método de vanguarda chamado isotope-resolved metabolomics que nos ajuda a ver os metabolitos – substâncias que são produzidas pelas bactérias dentro do intestino da mosca da fruta – e ver quais dessas substâncias vão para os seus cérebros. A ideia é perceber esta linguagem química utilizada entre as bactérias do intestino e o cérebro, que depois mudam o comportamento do animal.”

Para já, num estudo acabado de publicar na prestigiada Nature Communications, utilizaram essa tecnologia para demonstrar que uma dessas substâncias que causa uma mudança de comportamento é o lactato. “Ao descobrirmos quais são as substâncias que mudam o cérebro – e como –, podemos vir a mudar o comportamento alimentar sem necessidade das bactérias, ou seja, usando apenas medicamentos com as substâncias psicoativas que estas produzem.”

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A curto prazo, explica o investigador, ainda é “ficção científica” usar estas substâncias produzidas pelas bactérias para mudar o comportamento alimentar humano, já que a maioria dos mecanismos desta interação são ainda “completamente enigmáticos”. Mas, a longo prazo, depois de bem compreendidas e demonstradas estas interações, isso seria uma possibilidade.

Filho de pai português e mãe espanhola emigrados na Suíça, Carlos Ribeiro foi o primeiro na família a estudar na universidade. “Sinto orgulho nesse percurso, não há muitos exemplos de crianças filhas de imigrantes que fizeram carreira académica no país. Mas apesar de não vir de uma família de académicos, também tive a sorte de ter pais que sempre me transmitiram que eu podia fazer o que quisesse e alcançar o que desejasse.”

Na verdade, quando teve de escolher o que queria fazer estava indeciso, porque os interesses eram muitos: gostava de história, de física, de química, de biologia. “Acabei por escolher Biologia Molecular porque a Universidade de Basileia era – e ainda é – um dos melhores lugares do mundo para estudar essa área. Por outro lado, o curso tinha um pouco de física, química e biologia.” Fez o doutoramento na mesma área e na mesma universidade e, em 2004, partiu para Viena, na Áustria, onde foi fazer o pós-doutoramento no Instituto de Patologia Molecular (IMP) e onde se interessou pela tomada de decisões da mosca da fruta.

Apesar de ter raízes em Portugal, Carlos Ribeiro nunca tinha considerado trabalhar no país do pai. Conhecia sobretudo o norte, das férias, sobretudo a zona do Gerês, de onde a família é natural. Mas depois surgiu a Fundação Champalimaud. Em 2007, a instituição lançou o concurso para formar o Champalimaud Neuroscience Programme, concebido para investigar as bases neurais do comportamento e o cérebro humano. Carlos, na altura ainda em Viena, concorreu e foi selecionado. Sorri ao olhar para trás e ao recordar que, onde há 12 anos não havia nada, há agora mais de vinte grupos e mais de 400 pessoas dedicadas à investigação. Sente-se orgulhoso de ter feito parte dessa construção.

Os micróbios que vivem no nosso intestino afetam o comportamento do hospedeiro: os seres humanos. E podem afetar o funcionamento do cérebro, contribuindo para o autismo ou a depressão. Carlos Ribeiro está a investigador essa relação

Este ímpeto de criar e construir importa para ele – tanto no trabalho científico, como no organizativo. Compara mesmo o cientista com o artista, já que ambos são conduzidos por esse impulso de criar coisas novas. “É por isso que gosto muito da palavra alemã para cientista – wissenschaftler, ‘aquele que cria conhecimento’.”

As perguntas mais pessoais provocam-lhe sempre uma gargalhada sonora. Como quando é questionado sobre a sua maior qualidade. Avança que, talvez, por um lado, seja “querer saber mesmo como é que as coisas funcionam”, e, por outro, “ter um bom instinto para escolher problemas que são interessantes.” Sobre aquilo de que mais se orgulha – depois de nova gargalhada – garante que é ter sobrevivido no meio. “É uma carreira muito competitiva.” A isso acrescenta ter feito parte do percurso da Fundação, ter contribuído para formar muitos jovens cientistas que hoje dão cartas pelo mundo fora e ter ajudado a trilhar novos caminhos científicos. Nas décadas de trabalho que tem pela frente estará focado num grande desafio: passar os estudos da mosca da fruta aos seres humanos.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “La Caixa” e o BPI. O projeto Identifying and Testing the Metabolites Generated by Two Psychoactive Gut Bacteria to Alter Brain Function and Behavior, liderado por Carlos Ribeiro, da Fundação Champalimaud, foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) entre 785 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso HealthvResearch. O investigador recebeu 463 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O HealthvResearch apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 estão abertas até 3 de dezembro.