O início de carreira de Víkingur Ólafsson (n.1984, Reykjavík) foi discreto: os seus primeiros três discos, surgidos em 2009-12, foram publicados em edição de autor e passaram despercebidos fora da sua ilha natal. Tudo mudou em 2016, quando assinou contrato com a Deutsche Grammophon: o seu disco de estreia, no ano seguinte, com obras de Philip Glass, fez o New York Times anunciar o surgimento do “Glenn Gould da Islândia” e o Le Monde elogiar o seu “temperamento vulcânico”, e bastaram três anos e um disco dedicado a Bach, surgido em 2018, para Ólafsson passar de “revelação” a “consagrado”: em 2019, o disco com Bach foi distinguido como “álbum do ano” pela revista BBC Music Magazine e pelos prémios Opus Klassik e o pianista foi eleito “artista do ano” pelos Gramophone Awards e pela Limelight Magazine. No início de 2020, um álbum repartido entre Rameau e Debussy voltou a suscitar abundantes encómios, pelo que a Deutsche Grammophon decidiu aproveitar o clima eufórico para reunir uma caixa os três discos com o seu selo.

A capa de “Triad”

A ideia de publicar em 2020 uma antologia de alguém que começou a editar em 2018 e ainda só tem três discos (um deles com escassos meses) é um sintoma da aceleração vertiginosa do mundo actual e da pulsão da indústria da música clássica para tentar fazer face ao declínio e envelhecimento do seu público através da criação de um “star system” moldado no universo do pop-rock. Mas até o meio pop-rock só é tão lesto a lançar caixas retrospectivas quando a vedeta tem um fim trágico aos 27 anos, enquanto Ólafsson está vivo e é provável que venha a gravar ainda muitas dezenas de discos.

[Prelúdio n.º 10 BWV.855a, do Livro I de O cravo bem temperado, de Bach (transcrição por Silotti)]

A forma como a imprensa hoje acolhe estes “músicos-prodígio” é também sintomática: a expressão “Glenn Gould da Islândia” está talhada para as elites bem-pensantes dos EUA, país onde, para se atravessar a vida com aura de pessoa de vasta cultura sem ter de se fazer o esforço de a adquirir, basta “deixar cair”, nos momentos oportunos, que “o meu pianista favorito é Glenn Gould” e que “Yo-Yo Ma é um violoncelista sublime” (não é preciso conhecer o nome de mais nenhum pianista ou violoncelista, estes são também os únicos que os interlocutores bem-pensantes reconhecerão).

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Aliás, a menção a Gould a propósito de um disco com música de Glass é descabida, uma vez que é um compositor que Gould nunca tocou. E, sendo a música de Glass tendencialmente mecânica e espartilhada, está longe de ser o meio ideal para avaliar se um intérprete possui um “temperamento vulcânico”, pelo que fica a suspeita de que este adjectivo resultou apenas de Ólafsson ser originário de um país que, no imaginário corrente, é associado a vulcões. Mas como a Islândia é também conhecida pelos glaciares, dois anos depois, a Limelight Magazine ia para o extremo oposto do termómetro e elogiava a “frieza islandesa” de Ólafsson, o que sugere que a apreciação dos méritos do pianista tem dificuldade em libertar-se dos estereótipos associados à sua origem.

A capa de “Philip Glass — Piano Works”

Glass

Nas notas do livrete, Ólafsson confessa a sua admiração pela intransigente ética de trabalho de Philip Glass (n.1937), que tem por regra compor pelo menos cinco horas por dia, todos os dias, mesmo que isso implique dormir muito pouco. Com efeito, ninguém pode apontar a Glass o pecado da preguiça, o problema é que a sua copiosa produção costuma ficar-se pela repetição ad nauseam das mesmas fórmulas estafadas (ver Philip Glass aos 80: Onde é que já ouvimos esta música?). Dito isto, a música para piano solo encerra alguns dos momentos mais inspirados e variados da sua produção, entre os quais estão os 20 Études que compôs entre 1991 e 2012, de que Ólafsson seleccionou 11. Quando ouvidos separadamente, revelam algumas qualidades – o n.º 6 e o n.º 9 são bem mais dramáticos e intensos do que é usual em Glass – mas quando se ouve toda a sequência a recorrência dos clichés “glassianos” torna-se evidente.

[Étude n.º 6, ao vivo na Funkhaus, Berlim, em 2017, num concerto da série Live from the Yellow Lounge, promovida pela Deutsche Grammophon]

É também patente que Glass tende a “esticar” ideias promissoras muito para lá do que seria sensato – o Étude n.º 11 deixaria agradável impressão se terminasse ao fim de 3 minutos, mas prolonga-se por mais 8’24…

O álbum abre e fecha com “Opening”, de Glassworks (1981), uma das mais emblemáticas obras de Glass, primeiro em versão para piano solo, no final em arranjo para piano e quarteto de cordas por Christian Badzura. Vale a pena notar a coincidência de “Opening” ter sido também a peça escolhida por outra estrela do piano, Valentina Lisitsa, para abrir o seu álbum dedicado a Glass (2018, Decca), mas a selecção de peças da pianista ucraniana, centrada em excertos de bandas sonoras, aproxima.se do papel de parede musical. Portanto, quem entenda que precisa mesmo de um álbum de música para piano de Glass, não ficará mal servido com o de Ólafsson, que até consegue injectar alguma flexibilidade e calor em peças que habitualmente soam vítreas.

[Étude n.º 9]

Bach

A pressão para criar um “star system” desloca o foco do compositor e da obra para o intérprete, o que leva a que os jovens virtuosos tenham vindo a gravar discos com programas fragmentários, heteróclitos e idiossincráticos, mais compreensíveis num recital ao vivo do que num registo discográfico. O CD Bach de Ólafsson segue esta voga: compõe-se de 35 peças breves com as mais variadas naturezas e proveniências, algumas delas em arranjos e transcrições da autoria de Wilhelm Kempff, August Stradal, Ferruccio Busoni, Sergei Rachmaninoff, Alexander Siloti e do próprio Ólafsson.

A capa do disco dedicado às obras de Bach

É, obviamente, disco de escasso interesse para quem privilegie a “interpretação historicamente informada” e a fidelidade às intenções do compositor, mas a verdade é que Ólafsson consegue operar uma sedutora reinvenção da música de Bach, com uma técnica impecável e uma articulação clara, mas sem soar mecânico ou frio – pelo contrário, a sua abordagem é sempre flexível, lírica e calorosa e molda-se aos diferentes estados de espírito das peças. Tudo sugere que cada uma desta faixas foi objecto de uma longa meditação, ainda que sem prejuízo para a espontaneidade.

[Prelúdio Coral “Num komm de Heiden Heiland” BWV.659 (transcrição por Busoni)]

Bach tem fama de ser sisudo, mas é igualmente capaz de júbilo ou de ironia e Ólafsson é tão justo na gravidade e recolhimento do Prelúdio Coral “Num komm de Heiden Heiland” BWV.659 (na transcrição de Busoni) como no bom humor da Invenção n.º 15 BWV.786, e até consegue fazer coexistir solenidade e traquinice no Prelúdio Coral “Num freut euch” BWV.734 (na transcrição de Kempff).

[Invenção n.º 15 BWV.786]

A visão e as capacidades invulgares de Ólafsson estão particularmente patentes no Andante (Adagio) da Sonata para órgão BWV.528 (na transcrição por Stradal), em que, graças a um extraordinário legato, o piano soa tão etéreo e planante como um órgão.

Em resumo: é menos um disco de obras de Bach do que uma releitura pessoal e refrescantemente original de Bach.

[Andante (Adagio) da Sonata para órgão BWV.528 (transcrição por Stradal)]

Debussy + Rameau

Poderá parecer incongruente repartir um disco por dois compositores separados por século e meio, mas Claude Debussy (1862-1918) tinha grande apreço pelos cravistas barrocos franceses e, em particular, por Jean-Philippe Rameau (1683-1764), a quem prestou tributo no I Livro de Images (“Hommage à Rameau”) e de quem foi empenhado advogado, reprovando os que se deixavam seduzir pela “grandiloquência mendaz das crianças ávidas de glória, negligenciando o gosto perfeito, a elegância estrita, que dão corpo à absoluta beleza da música de Rameau”.

A releitura dos trabalhos de Debussy e Rameau

Tal como no recital Bach, o programa deste CD é uma manta de retalhos, cosida de acordo com as preferências e caprichos do intérprete. As qualidades evidenciadas por Ólafsson em Bach voltam a estar presentes: o virtuosismo nunca é colocado em primeiro plano e a leveza e elasticidade nunca implicam o sacrifício da nobreza e da elegância.

[“Les tendres plaintes”, de Rameau]

Tal como no recital Bach, a escolha de peças de Rameau por Ólafsson desfaz a imagem estereotipada do barroco como época de pompa e gravitas e nenhuma peça o demonstra melhor do que a zombeteira, imprevisível e acrobática “Les tourbillons” (das Pièces de Clavecin, de 1724), que Ólafsson despacha com brio, depois de ter assinado uma leitura de infinita delicadeza de “Les tendres plaintes” (da mesma colecção).

[“Les tourbillons”, de Rameau]

Rameau também sabia como insinuar nos elegantes salões da aristocracia os perfumes rústicos, como mostra a “Musette” (das Pièces de Clavecin, de 1724), a que Ólafsson confere uma serenidade crepuscular.

[“Musette en rondeau”, de Rameau]

Nas mãos de Ólafsson, as peças de Debussy convivem sem atrito com as de Rameau, dando razão à apreciação de Debussy sobre a música de Rameau: “é tão inovadora na sua construção que o espaço e o tempo são vencidos e Rameau parece ser nosso contemporâneo”. Esta aproximação entre épocas tem o seu cume no final do CD, com a “Hommage à Rameau”, que, ao mesmo tempo que celebra o passado, se projecta no futuro, com o seu final, incorpóreo e suavemente radioso, a flutuar fora do tempo.

[“Hommage à Rameau” (n.º 2 do I Livro de Images), de Debussy]