É muito provável que a então arquiteta francesa Claire Vallée nunca imaginasse que um biscate de verão na Suíça acabasse por ser responsável por uma mudança de vida tão radical que a faria entrar na história da gastronomia francesa. Natural de Nancy, decidiu mudar de ares quando acabou a sua formação académica, foi parar ao setor da restauração suíço e é hoje a responsável pelo primeiro restaurante 100% vegan a ganhar uma estrela Michelin em França.
“Tudo tem o seu lugar. Nós simplesmente queremos mostrar que é possível comer de forma diferente”, diz ao The New York Times a agora chef de cozinha responsável pelo recém premiado ONA, casa nos arredores de Bordéus cujo nome remete à expressão “Origine Non Animale”, “Origem não animal”, em português. A paixão que descobriu no seguimento dessa experiência na Suíça fez Claire mudar radicalmente de vida: largou de vez a arquitetura, lançou-se numa aprendizagem que a fez cruzar restaurantes em todo o mundo (Tailândia incluída) e no momento que considerou ideal, corria o ano de 2016, voltou a casa com o objetivo de abrir o seu próprio espaço.
Nessa altura, o local que lhe pareceu mais apropriado para essa aventura foi a localidade de Arés, na região de Gironde, mas os contratempos lá acabaram por aparecer. França é inegavelmente um dos países onde a gastronomia mais é levada à sério, sendo também ela a base de muitas outras cozinhas que foram aparecendo pela Europa. A proteína animal foi sempre estrela principal de todo esse legado gastronómico e os vegetais, qual parente pobre, vistos como um mero acompanhamento. Foi precisamente isto que demoveu os bancos e investidores que foram conhecendo Claire e o seu sonho de abrir um restaurante totalmente vegan (este ONA, por exemplo, não conta nem com lã nem com cabedal na sua decoração, prova que o veganismo é levado a sério).
Claire levou sucessivas negas — “Diziam-me sempre que os prognósticos para o veganismo e a comida à base de plantas era demasiado incerto”, conta ao The Guardian — até que decidiu apostar em parte no crowdfunding, mas também na ajuda do La Nef, um banco francês especializado em empréstimos bancários cedidos a negócios “éticos”. “Voilá!” — assim nasceu este ONA que não só venceu esta histórica primeira estrela mas também garantiu uma estrela verde, novo galardão atribuído pelo Guia Michelin que premeia espaços que prestam especial atenção ao conceito de sustentabilidade e responsabilidade ambiental.
“Eu acredito nas plantas! Para mim esta é sem dúvida a cozinha do futuro porque consegue garantir todas as necessidades dos tempos atuais: é ecológica, ética, humana e saudável”, escreve a chef Claire num manifesto publicado no site do ONA. É por tudo isto que na sua cozinha só entram legumes, cereais, algas, frutas, sementes, frutos secos, cogumelos, ervas aromáticas, especiarias e flores. A chef assume que o seu objetivo é quebrar preconceitos — como a ideia de que a comida vegan “não tem nutrientes e sabor, ou é demasiado cara e limitada a determinado tipo de ingredientes” — e democratizar esta forma de cozinha através de combinações de sabor e textura.
A sua carta muda com frequência mas, a título de exemplo, saiba que nela pode encontrar combinações como a de alface do mar, folha de ostra e salsifi negro; abeto, cogumelos e saké; ou dulse (tipo de alga avermelhada) com citronela e galanga (espécie de gengibre). A conjuntura pandémica obrigou o ONA a fechar portas temporariamente por isso ainda não é certo quando será possível visitá-lo. É seguro, ainda assim, que o preço médio de uma refeição aqui andará pelos 70€ por pessoa (o menu de degustação maior, por exemplo, custa 59€ e tem oito momentos).
Abordagens mais viradas para a redução de consumo de carne não são totalmente novas em território francês — o mestre Alain Passard, do parisiense L´Árpege, já o faz há vários anos. Até Alain Ducasse, outro dos grandes cozinheiros gauleses, também já assumiu o objetivo de reduzir a quantidade de proteína animal nos seus menus –isto depois de em 2016 ter dito ao Le Monde que “não era fácil fazer gastronomia de topo quebrando com um indicador cultural tão grande como a carne”. Ainda assim, esta é a primeira vez que um espaço totalmente dedicado ao veganismo ganha projeção. Gwendal Poullenec, o diretor internacional dos Guias Michelin, diz que atribuir uma estrela a “um restaurante que não só não serve carne como é totalmente vegan” é capaz de “agitar as águas” de um setor com uma consciência ambiental cada vez maior.