Há cerca de um ano, em pleno caos pandémico, o poeta catalão Joan Margarit foi diagnosticado com um linfoma. Demorou muitas semanas para poder fazer uma biopsia e os oito tratamentos de quimioterapia que se seguiram não estavam a resultar. Então decidiu parar e entregar-se ao curso da vida e da morte, algo que sempre fez enquanto poeta. E a morte chegou esta terça-feira, dia 16 de fevereiro, na sua casa, em Barcelona, a sua cidade, o seu “último amor”, aos 82 anos.
Neste tempo de sacralização da juventude, pode 82 anos pode parecer muita idade. Muitos chamá-lo-iam “velho” se não conhecem a sua jovialidade viril, a sua agilidade física e mental, a sua poesia que nunca cantou o declínio da velhice e que, mesmo quando cantou o declínio das cidades, o óxido das casas abandonadas, a morte da filha Joana, nunca procurou dirigir-se à morte, mas sempre à vida, aos leitores de hoje e de amanhã. Falando sempre daquilo que é universal, daquilo que é gerador das experiências humanas fundamentais, daquilo que nos torna iguais, com gestos amplos, voz assertiva. Quem assistiu em Portugal, em 2016, à sua conferência no festival Literário Folio e na Casa Fernando Pessoa, onde até cantou um bolero do cantor chileno Lucho Gatica, sabe como era cheio de vida, energia, humor.
E Joan Margarit nunca teve uma vida fácil, nunca foi poeta “de carreira”, nem se tornou conhecido por estar escudado em grupos de poder cultural, religioso ou político. Mesmo a sua decisão, em 1978, de passar a escrever em catalão, a sua língua materna, trouxe-lhe mais controvérsias do que amigos. Até porque tudo o que escrevia traduzia depois para castelhano, fazendo com que a sua fosse uma poesia essencialmente bilingue. Este ato simboliza também aquela que foi a sua posição política face à independência da Catalunha: uma posição crítica sobre ambos os lados, mas afirmando que “a relação da Catalunha com esta Espanha deveria ser completamente alterada”. Em 2019,quando recebeu o prémio Cervantes, o alcaide de Barcelona demorou um dia a dar-lhe publicamente os parabéns, mostrando assim o mal estar que havia, entre os políticos e este poeta que escolheu sempre manter-se independente. E se escrevia em catalão e castelhano, também não se coibia de dizer que “Espanha sem a Catalunha não era nada”, porque nestas terras está “o coração cultural” do país.
Como dizíamos, nunca a vida lhe foi fácil, e isto torna a sua morte uma injustiça, porque, na verdade, a sua vida como poeta só começa ao 40 anos, quando renega tudo o que escreveu para trás, em castelhano, e passa a escrever em catalão. Esta reconciliação com a sua língua materna e, como ele dizia “com a sua gente”, insuflaram um novo fôlego na sua poesia e de poeta desconhecido tornou-se um dos poetas maiores do nosso tempo, seguramente o grande poeta espanhol, aquele para quem seria mais do que justo reclamar o prémio Nobel.
Segundo o poeta e editor Diogo Vaz Pinto, que em 2015 arriscou publicar uma antologia da poesia de Margarit, Misteriosamente Feliz, “Joan Margarit, sendo um poeta de grande amplitude, muito lido em Espanha, não é um poeta de massas. O que ele faz não é entretenimento, é poesia, a verdadeira poesia. E isso marca uma clivagem grande entre o que ele escreveu e o que se escreve por aí hoje em dia e ao qual se chama também ‘poesia’, mas que não o é.”
“Não tenhas piedade do que foste,/ porque a piedade é demasiado breve:/ não dá tempo para construir nada./ de noite, num pequeno aeroporto,/ vês um avião que vai subindo./ vai-se perdendo o sinal. /E convences-te de que vives/uma época que, sem esperança, / é já a mais feliz da tua vida./ há uma outra poesia, haverá sempre,/ como há uma outra música./ A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.”
[Joan Margarit, “Perde-se o Sinal”, Misteriosamente Feliz]
Em 2009, um projeto editorial efémero chamado Ovni publicou o livro Casa da Misericórdia, que passou despercebido. É a tradução de Miguel Filipe Mochila, para a Língua Morta (2015), que vai tornar o Joan Margarit um poeta de culto em Portugal. No entanto, continuam sem tradução os muitos livros do poeta, inclusive o último, que escreveu já doente e que terá concluído poucos dias antes de morrer, cujo título é Animal de Bosc. A relação entre a nossa animalidade basilar e as máscaras que a civilização nos ensina e obriga a usar, para que nos possamos relacionar uns com os outros, foi outro dos temas que Margarit explorou e que é transversal à sua obra, tal como a ideia de perda, de ruína, da presença do que está ausente, ou não fosse ele arquiteto. Um arquiteto que trabalhou na construção da Sagrada Família, de Gaudi, mas cujo grande orgulho era a sua participação na recuperação de vários bairros pobres de Barcelona. Enfim, um arquiteto-poeta que sabia que, por mais fortes que sejam as fundações, elas nada valem sem a casa e os seus habitantes.
Nascido numa aldeia na região de Lheida, Catalunha, cresceu durante a Guerra Civil, com um pai (republicano) preso, uma mãe pela qual nunca se sentiu amado e a presença fundamental dos avós, analfabetos, que aos domingos o levavam ao cinema. Viu morrer uma irmã de 4 anos por falta de medicamentos e mais tarde enterraria duas filhas: Anna e Joana. Esta última que nasceu com uma doença rara (Síndrome de Rubinstein-Taybi), morreu aos 30 e para lidar com a sua perda o poeta escreveu o livro Joana, que é uma das sua obras mais lidas.
“Margarit é um poeta que nos ensina a grande lição da sobrevivência à crueza da vida. Aliás, esta ideia da sobrevivência é fundamental na obra dele, um obra que, tendo uma grande amplitude, dialogando com os clássicos, vai diretamente ao que importa, não tem floreados, não pede condescendência aos leitores”, diz-nos ainda Diogo Vaz Pinto. Em dezembro último, a editora Língua Morta em parceria com a a livraria Flâneur, do Porto, fizeram uma nova e aumentada reedição de Misteriosamente Feliz, que estava esgotado há vários anos.
Na sua passagem por Portugal, em 2016, Margarit, participou ainda numa curta metragem do projeto Arquipélago, também de Vaz Pinto, Paulo Tavares e do cineasta Hugo Magro que pode ser vista aqui. E se agora morreu o corpo de Joan Margarit, a sua vida como uma dos grandes bardos da cultura ocidental, do fim do século XX e do princípio do século XXI está agora a começar.