Quando era pequena, Esha Madan costumava ir para o laboratório da empresa farmacêutica do pai, em Lucknow, no norte da Índia, e “ficava fascinada com aquele ambiente de cientistas bioquímicos a fazer testes e experiências”.

Naquela época, a investigadora indiana pensou no “quão impressionante era que todos aqueles instrumentos” da Bioquímica “pudessem chegar a resultados extraordinários sobre o corpo humano”, reflete, com um brilho nos olhos, a partir do seu escritório na Fundação Champalimaud, em Lisboa. Hoje, com 38 anos, essa imagem da infância tornou-se o seu mundo e com acesso a tecnologia muito mais sofisticada.

Os avanços tecnológicos modernos proporcionaram-nos oportunidades sem precedentes para analisar genes e proteínas, fazer transcrições [genéticas] e estudar o papel potencial que têm nas vias de sinalização molecular subjacentes que determinam a evolução e progressão tumoral”, sublinha, enfática, a cientista.

Esha fala sobre a paixão pela ciência como quem disserta. Faz questão de usar a terminologia científica, ao mesmo tempo que tenta encontrar as palavras certas. Quer garantir que nada se perde na tradução da ciência para inglês e, depois, para português.

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“Intriga-me que o nosso corpo seja tão complexo com diferentes tipos de células”, diz enquanto olha de frente para a câmara. Faz uma pausa. E retoma. “Olhe-se para a heterogeneidade de um tumor, que tem vários tipos de células, e como cada um deles tem um papel na determinação da forma como um medicamento irá responder à terapia escolhida”, explica para introduzir a investigação que está a conduzir.

“É intrigante que o cancro da mama apresente uma heterogeneidade inter e intra-tumoral. Isto proporciona uma paisagem clonal muito heterogénea de tumores, o que faz com que os clones sensíveis respondam bem à terapia direcionada, enquanto os clones resistentes fornecem um grande impedimento no diagnóstico e tratamento do tumor, contribuindo assim para a má sobrevivência e reincidência do tumor.”

Por isso, a bióloga indiana está a tentar encontrar uma forma de se diagnosticar mais cedo o cancro da mama para “salvar vidas” e “aumentar a esperança de vida das pacientes com esta doença”.

Esha Madan acredita que a alta taxa de mortalidade do cancro da mama se deve “à falta de estratégias inteligentes” para diagnósticos atempados. Com a ajuda da equipa (Maria Leonor Peixoto e Denise Camacho), a bióloga está a tentar encontrar uma forma de diagnosticar mais cedo a doença para “aumentar a esperança de vida dos pacientes”

Ao mesmo tempo, a cientista de fala pausada está convicta que poderá contribuir para encontrar uma forma de reverter a evolução dos tumores malignos. Para isso, ela propõe um novo estudo centrado no oncogene DEPTOR [do inglês: DEP domain-containing mTOR-interacting protein], ou seja um gene mau, e nos possíveis inibidores para a sua progressão, relacionando-os com “um eixo de reação bioquímica” que ela acredita que pode ser controlado.

“Identifiquei que o p53 [supressor de tumores] regula a transcrição de microRNA [miR-181d], o que inibe a expressão do DEPTOR”, explica. Dessa forma, “o eixo miR-181d/DEPTOR funciona como um equilibrador crítico que determina o destino da oncogénese no cancro da mama”.

Com o conhecimento já formulado sobre a p53, ela percebeu, então, que enquanto “proteína supressora de tumores, tem potencial de subjugar as múltiplas vias oncogénicas”, e assim “modular as funções do DEPTOR”.

Ou seja, ao identificar essa particularidade, a cientista percebeu que ele é capaz de regular a expressão do gene oncogénico e inibir a sua atividade. Por isso, ela tinha de fazer mais com esses resultados.

Esha Madan anda a pensar nisto há pelo menos seis anos. Em 2020, com o projeto “p53/miR-181d/DEPTOR, um Novo Eixo Supressor de Tumores para o Tratamento do Cancro da Mama”, conseguiu um financiamento de trezentos mil euros da Fundação “la Caixa”, através do programa de Pós-Doutoramento Junior Leader.

A investigação – que lidera, com a ajuda de dois técnicos – ainda está na fase preliminar e o objetivo geral é “encontrar uma melhor compreensão sobre o cancro da mama” [em estado mais avançado], mais especificamente para “o cancro da mama receptor de estrogénio positivo (ER+)”.

Em geral, as células cancerígenas que são retiradas do tumor durante uma biópsia, ou numa cirurgia, são analisadas para identificar possíveis receptores de estrogénio [hormona sexual feminina] ou progesterona [hormona sexual masculina].

Quando as hormonas se ligam a esses receptores contribuem para o crescimento do tumor – que são denominados receptores hormonais positivos ou negativos com base na presença (ou ausência) desses receptores nas células tumorais. É com base nesse diagnóstico que se determina o risco de recorrência da doença e qual o tratamento adequado.

Esha quer também “estabelecer o mir181d e o DEPTOR como biomarcadores [tratamentos e diagnóstico] anticancro [para o ER+], para levar a uma deteção precoce de cancro da mama e, desta forma, estabelecer um sistema eficiente para prevenir e criar um prognóstico respetivo”, resume.

A cientista está convicta que poderá contribuir para encontrar uma forma de reverter a evolução dos tumores malignos – com aplicação em terapias, procedimentos médicos e diagnósticos

O cancro da mama ocupa o segundo lugar como causa de morte por cancro em Portugal (depois do cancro do pulmão). Nas mulheres, é o cancro que mais mata. De acordo com a Liga Portuguesa Contra o Cancro, 1500 mulheres morrem da doença todos os anos em Portugal. Segundo dados do Registo Oncológico Nacional, são detetados anualmente cerca de seis mil novos casos, dos quais, um em cada 100 são do sexo masculino. Estima-se que 1 em 8 mulheres irá tê-lo ao longo da vida.

O tipo de cancro da mama é determinado pelas células mamárias afetadas de forma localizada ou invasiva. A maioria são carcinomas, por isso é comum dividi-los em diferentes tipos: ductal in situ (pré-invasivo), invasivo ou infiltrante, em estado mais avançado, onde se enquadra o ER+ estudado pela cientista indiana — e que representa entre 70 a 80% de prevalência em pacientes.

No caso dos invasivos, há ainda tipos especiais: triplo negativo (muito agressivo e de difícil tratamento) e inflamatório (mais raro). Os tipos menos comuns de cancro da mama são a doença de Paget (que se origina nos ductos lácteos sob o mamilo), angiossarcoma (começa nas células que revestem os vasos sanguíneos ou linfáticos) e tumor filoide (nódulo duro de tecido que pode surgir em qualquer parte da mama).

A sequenciação da próxima geração e as tecnologias de alto desempenho revolucionaram a nossa compreensão do cancro”, diz Esha. “Por isso temos hoje um vasto conhecimento sobre as mutações motoras, alterações genéticas, e os potenciais alvos de intervenções terapêuticas”. E é por isso que “a descoberta de certos genes-chave como biomarcadores é clinicamente significativa para um diagnóstico e prognóstico eficazes do cancro”.

Com base nessa consciência científica e do que se pode alcançar — se se apostar em investigação— Esha está indignada com o número de pacientes que ainda morrem com cancro da mama. Acredita que a alta taxa de mortalidade desta doença se deve “à falta de estratégias inteligentes” para fazer um diagnóstico atempado.

Por isso, para ela, este projeto de investigação não só está alinhado com essa visão estratégica, como também “os objetivos específicos englobam todos os aspectos da ciência básica, clínica e de pesquisa translacional”. Ou seja, de uma investigação científica com aplicação prática em terapias, procedimentos médicos e diagnósticos.

“Queremos alcançar avanços científicos básicos na nossa compreensão da via molecular que determina a sinalização oncogénica versus anti-cancerígena, e descobrir novas estratégias de terapia anti-cancerígena para combater esta condição crónica e debilitante.”

Esha não tem nenhum caso da família com cancro da mama. “Mas agora que penso nisso”, pondera, “recordo-me que a mãe de uma amiga dos tempos de infância, que ainda é amiga da família, morreu de cancro da mama.” Ao olhar para trás, a cientista – mãe de uma menina de 9 anos e a viver em Portugal desde 2017 – admite que foi algo que lhe ficou gravado na memória.

A bióloga chegou a sonhar ser médica. Mas o apelo da Biologia Humana e a inspiração paterna falaram mais alto. Quando frequentava a escola secundária, na cidade de natal de Lucknow, capital do estado de Uttar Pradesh, conhecida pela indústria de ponta nas indústrias farmacêutica, e aeroespecial, por exemplo – Esha “tinha sempre notas muito altas à disciplina de Biologia”.

Na hora de escolher o futuro, não restaram dúvidas: “fiquei tentada pela Ciência e decidi seguir uma carreira na investigação”. Começou por uma licenciatura em Ciências da Vida e Zoologia (2004) e seguiu Mestrado em Biotecnologia na Amity University, na Índia (2006). Foi nesta altura que começou a investigar a “anatomia” do cancro, estudando as células cancerígenas em geral.

Para Esha, “uma terapia oncológica personalizada, orientada por biomarcadores, pode atenuar ou conter o tamanho dos tumores se diagnosticados precocemente, aumentando assim a esperança de vida dos doentes com cancro”

“Tive oportunidade de trabalhar em vários institutos de investigação por toda a Europa e Estados Unidos, onde me formei e especializei no campo da Bioquímica, transcrição e biologia molecular, cultura de células e técnicas de xenoenxerto [transplante de tecido, órgão ou parte de órgão, entre indivíduos de espécies diferentes] tumoral.”

Todas essas experiências do universo “de uma oncologia molecular” mundial entusiasmaram-na a fazer o doutoramento em Bioquímica e Transcrição da Biologia do Cancro [2013], numa parceria entre a King George’s Medical University, em Lucknow, e a Ohio State University, nos EUA.

Durante o doutoramento publicou um recorde de 12 artigos científicos, considerado um feito extraordinário neste contexto. “Tive muito apoio dos meus orientadores, co-orientadores e do meu marido, que também é cientista”, enquadra.

Hoje, Esha é uma das autoras de referência nesta linha de investigação. Tem 25 publicações em revistas de alto impacto, nomeadamente, Nature, Journal of Biological Chemestry, Trends in Cancer e Trends in Cell Biology.

Depois do doutoramento, em 2013, Esha aventurou-se no Pós-doutoramento, no Instituto de Biologia Celular da Universidade de Berna, na Suíça, e entre 2015 e 2017 abraçou uma nova aventura nos EUA: juntou-se à Universidade de Ciências Médicas, no Arkansas, como Professora Assistente de Investigação. O seu laboratório centrou-se no “estudo da interação de fatores de transcrição e RNAs (lncRNA) de longa duração na regulação do modelo de doenças cancerígenas”.

Em 2017 mudou-se com a família para Portugal. A Fundação Champalimaud abriu-lhe as portas como visiting scientist no laboratório de Eduardo Moreno, o antigo mentor de pós-doutoramento em Berna. Aqui começou uma jornada para “explorar várias oportunidades de financiamento” e tentar seguir em frente com a investigação sobre o cancro da mama que tanto a inquieta. A bolsa “la Caixa” foi uma delas e a rampa de lançamento.

Neste momento, Esha tem tudo pronto para iniciar as experiências da sua investigação. Está só a aguardar a aprovação ética animal. “Temos as linhas de células inibitórias [CRISP-mediated knock out cells] para mir181d e DEPTOR prontas. Assim que tivermos a autorização, validaremos os nossos resultados de prognóstico, mecânicos e terapêuticos, utilizando o modelo animal geneticamente traçável e xenoenxertos humanos”.

A cientista acautela que ainda demorará alguns anos até terem resultados validados que possam vir a ser utilizados de forma clínica. Mas enfatiza que o processo em si não só é rico para a compreensão do campo de estudo, como também, neste caso, os biomarcadores têm um papel maior.

Os biomarcadores fornecem uma visão e uma compreensão profunda da via molecular desregulamentada ligada e justificam a sua aplicação a uma certa iniciação terapêutica, desempenhando, assim, um papel crítico na gestão clínica dos pacientes com cancro”.

Numa fase mais avançada da investigação, quer também estudar como pode “beneficiar esses biomarcadores em combinação com a quimioterapia e outros medicamentos, para estudar a sua eficácia no cancro da mama”.

Para Esha, não há dúvidas: esses biomarcadores, “quando detetados, têm o potencial de prever a resposta dos cancros a uma determinada terapia sistémica”. Por isso, “uma terapia oncológica personalizada, orientada por biomarcadores, pode atenuar ou conter o tamanho dos tumores se diagnosticados precocemente, aumentando assim a esperança de vida dos doentes com cancro”.

A investigadora indiana espera, no futuro, poder “abrir um laboratório para continuar a investigar os mecanismos moleculares chave e as redes genéticas que regulam o cancro”, bem como tentar desenvolver “abordagens inovadoras combinadas de imunoterapia, com aplicações ao cancro pancreático”.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Esha Madan na Fundação Champalimaud, p53/miR-181d/DEPTOR, um Novo Eixo Supressor de Tumores para o Tratamento do Cancro da Mama, foi um dos 45 selecionados (nove de Portugal) – entre 575 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu trezentos mil euros euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas para a edição de 2021 encerraram em outubro e, para a edição de 2022, deverão abrir no próximo verão (data a anunciar).