O coreógrafo João Fiadeiro disse esta quarta-feira à agência Lusa sentir-se “bastante feliz” pela doação do seu arquivo pessoal, que “continua vivo”, com cerca de 4.000 títulos, desde vídeos, artefactos a textos, à Fundação de Serralves, no Porto.

A doação teve o seu ato formal, ao fim da manhã, numa cerimónia de assinatura entre a Fundação de Serralves e o coreógrafo, ‘performer’ e investigador João Fiadeiro, de um contrato de doação do Arquivo Atelier|RE.AL a esta entidade.

Contactado pela Lusa, o coreógrafo disse esperar que esta iniciativa “seja uma chamada de atenção para a necessidade de cuidar, acolher e inscrever este património muito importante na arte contemporânea portuguesa”.

“Enquanto comunidade e disciplina, temos tido uma atividade muito intensa nos últimos 30 a 40 anos, com projetos magníficos. Eu sou apenas um de muitos protagonistas” da área da dança, apontou, acrescentando que “não tem havido da parte do Estado e das instituições com responsabilidade nessa área, a atenção que este movimento merece”.

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Fiadeiro – que fundou o Atelier|RE.AL em 1990, no início de uma década fundamental para a dança portuguesa, e manteve durante 30 anos uma intensa atividade – considera que a doação do seu espólio entretanto acumulado “pode contribuir para uma chamada de atenção” para a situação da dança, em Portugal.

“Há uma lacuna, na forma como o país não consegue inscrever ou olhar para esta história recente produzida pela Nova Dança Portuguesa e pela dança contemporânea. Ela não está inscrita, e não tem a atenção que tem o teatro, o cinema, a literatura. Nesse sentido esta área da dança está um pouco na margem”, lamentou.

Figura de referência da dança portuguesa e europeia, João Fiadeiro reuniu, ao longo de três décadas, aproximadamente 4.000 títulos, desde textos, vídeos, áudios, imagens, artefactos, entrevistas, artigos de jornal e críticas, que o Museu de Serralves, através do seu Serviço de Artes Performativas, irá estudar e divulgar, no âmbito desta doação.

Entre os documentos, além de material relativo às criações de João Fiadeiro, entre 1990 e 2019 – quando o seu atelier, em Lisboa, encerrou por falta de apoios – existem ainda títulos e imagens das criações dos artistas associados do Atelier|RE.AL, como Cláudia Dias, Tiago Guedes e Gustavo Sumpta, e à programação de projetos de cariz laboratorial e experimental desenvolvida pela estrutura ao longo dos últimos 30 anos, que passa a integrar o acervo de arte contemporânea de Serralves.

Questionado pela Lusa sobre a origem da iniciativa, João Fiadeiro apontou que resultou de “um conjunto de coincidências e fatores”.

“Quando o atelier RE.AL fechou, em 2019, o seu arquivo ficou em perigo. Como não tínhamos espaço para o manter enviámos cartas a algumas instituições para que o seu conteúdo pudesse ser guardado, estudado e partilhado. A Fundação de Serralves contactou-me há dois anos, e desde então, começámos conversas para a possibilidade da doação”, relatou o coreógrafo.

Fiadeiro vê esta entrega não como algo “acabado”, mas como um projeto que irá acompanhar “numa colaboração dinâmica”.

“Embora o atelier tenha encerrado, nós continuámos muito ativos. A dança e a performance são algo que acontece no presente e ao vivo. Os arquivos estão sempre em atualização constante, e nós queremos manter essa relação para o futuro”, disse o coreógrafo nascido em 1965, e que emergiu no final da década de 1980, dando origem, na sequência do movimento “pós-moderno” americano e dos movimentos da Nouvelle Danse francesa e belga, à Nova Dança Portuguesa.

Grande parte da sua formação foi feita entre Lisboa, Nova Iorque e Berlim, tendo depois sido bailarino na Companhia de Dança de Lisboa (1986-1988) e no Ballet Gulbenkian (1989-1990).

Em 1990 fundou a Companhia RE.AL que, para além da criação e difusão dos seus espetáculos, apresentados com regularidade um pouco por toda Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e América do Sul, acompanhou e apresentou artistas emergentes, acolhendo residências de artistas e promovendo eventos transdisciplinares.

João Fiadeiro – que criou e desenvolveu o método de Composição em Tempo Real, cruzando a sua investigação com áreas científicas como a neurociência ou as ciências dos sistemas complexos – tem orientado com regularidade oficinas em diversas escolas e universidades nacionais e internacionais.

Para Serralves, por seu turno, segundo um comunicado, o arquivo “será um importante pilar e fonte de conhecimento para a reconstituição de uma história das artes performativas, área a que a Fundação está ligada desde a sua inauguração”.

“Através da organização de exposições temporárias e itinerantes, a apresentar junto de teatros e centros coreográficos em Portugal e no estrangeiro, este importante arquivo de grande valor artístico e científico, representativo da memória coletiva de um país e da sua cultura performativa, irá adquirir uma nova vida, permitindo renovadas leituras dos seus documentos”, adianta, no comunicado.