Foi de forma muito mais calma do que é habitual que André Ventura subiu ao palco do VII Conselho Nacional do Chega para apresentar a proposta da direção para o novo programa do partido. Numa intervenção de quase uma hora, em que avisou os conselheiros que não ia ser emotiva, mas sim “pouco interessante”, o líder do Chega abdicou dos gritos de luta, mas não deixou as críticas ao atual regime, com acusações ao Presidente da República, que disse ser um “corta-fitas do regime”. Ao insistir que o Chega está pronto para ser Governo, Ventura voltou a deixar linhas vermelhas ao PSD e, desta vez, assegurou que não haverá qualquer Executivo com o Chega em que não seja aceite uma reforma da justiça que inclua “prisão perpétua e enriquecimento ilícito”.

Num cenário em que Chega e PSD se sentam à mesa para formar Governo, o partido nacionalista não vai abdicar da reforma da justiça e André Ventura explica que não o pode fazer para não perder a confiança dos eleitores: “Estou convencido que se aceitamos que se aceitamos afastar a reforma da justiça pela participação em qualquer Governo, os eleitores não nos voltam a dar uma forma de confiança.” Nesse caso, considera, “o PSD não terá outro caminho senão aceitar esta reforma da justiça com prisão perpétua e enriquecimento ilícito”.

“Se for um governo ineficaz, corrupto ou que não sirva os interesses em Portugal, qual a diferença de ser do PSD ou do PS?”, questiona o presidente do Chega, ao não afastar a possibilidade de ser “oposição ao PSD” e ao apontar uma certeza: “O PSD se pensa que nos encosta à parede a dizer ‘ou isto ou a parede’, nós devemos dizer-lhes a parede”.

No programa do Chega que está em discussão no Conselho Nacional, pode ler-se que é um objetivo do partido o “aumento significativo das penas de prisão para os crimes de corrupção e tráfico de influências, entre outros, bem como a criminalização do enriquecimento injustificado”, mas, ao contrário do anterior programa, este documento não referia “prisão perpétua”. Apesar disso, esse foi um dos temas em que André Ventura mais se focou no discurso, sendo até apontado como uma arma na luta com o PSD.

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Chega assume-se de direita, conservador e nacionalista. O que diz o novo programa sobre a identidade do partido

Governo sim, mas sem perder ADN e sem cair no “erro do CDS”

Se ser ou não Governo continua a ser um tema para os dirigentes e militantes do Chega, André Ventura acredita que o ADN do partido tem de ser defendido a todo o custo e que nada pode demover o partido das bandeiras que o criaram. “Temos de ser muito firmes no que desejamos e no que queremos. Acho que devemos ser Governo porque não somos um partido de protesto, mas devemos ser muito firmes nessa exigência”, esclareceu. Aliás, Ventura foi até mais longe: “Gritaremos tão alto naquela Assembleia quer esteja o PS no Governo ou o PSD.”

Para chegar ao Executivo e, ainda assim, continuar com o ADN do partido bem presente, Ventura assegurou que é preciso deixar claro que o Chega não aceita ser Governo em “todas as circunstâncias”, até porque há certas opções que, disse, “não serão currículo, serão cadastro”. É preciso permanecer “diferente”, que “não cederá a chantagens de partidos do sistema” e que “não se deixará condicionar”.

Se, por um lado, o partido “não tem medo de apresentar um programa de rutura”, por outro lado, Ventura tem medo que se perca uma oportunidade, a única que acredita que os portugueses vão dar ao Chega. E brinca até com o assunto, ao dizer que tem sempre gritado por “uma oportunidade” e não duas ou três. “Estou convencido de que os portugueses não nos darão duas oportunidades, hão-de nos dar uma”, acredita, ao garantir que esta “tem de ser agarrada”. “Aceitar ir para um Governo a todo o custo pode minar as nossas possibilidade de transformar a vida dos portugueses e colocar-nos num embrião de compadrio, corrupção e clientelismo”, avisou.

Neste sentido, Ventura distancia-se ainda dos democratas-cristãos. “Não podemos cair no erro que o CDS cometeu durante as últimas décadas e que está a levar ao seu desaparecimento”, alertou perante os conselheiros nacionais, ao justifica que “os partidos que se tornam muleta tendem a desaparecer”.

Ventura defende “cadastro étnico-racial”

Relativamente às minorias, André Ventura voltou a falar sobre a comunidade cigana e a exigir ao Estado números sobre os membros desta etnia, ao frisar ser importante saber quantas pessoas vivem do seu trabalho, quantas jovens são obrigadas a casar ou quantos membros de etnia cigana estão em prisões. Num garante de que não é por “perseguição” mas para “resolver o problema”, Ventura pediu que se deixe a “passividade” relativamente ao tema.

“O partido deve defender não só a identificação das comunidades subsidiodependentes, onde estão localizadas, qual é a prevalência da subsidiodependência, qual é o nível de subsidiodependência, porque na verdade somos todos nós que estamos a pagar isso”, sendo que para André Ventura é imperial que as minorias cumpram “as mesmas regras que cumpre a maioria, sem privilégios, sem cedências, quer a nível fiscal, quer a nível de regras sociais, quer a nível de regras comportamentais”.

Para resolver o “problema com a comunidade cigana e com outras comunidades”, o presidente do partido alertou para a necessidade de perder o “medo” em falar de minorias e defendeu a existência de um “cadastro étnico-racial” que seria “ímpar dentro da UE”. “Não nos deve meter medo porque sabemos que não somos racistas”, assegurou, ao comparar esta questão com a da “despesa pública crónica e do défice crónico”, ao dizer que há alguns anos também foi preciso identificar esse problema. “Jorge Sampaio até dizia que há mais vida além do défice”, recordou, para argumentar que o Chega “diz o mesmo sobre as minorias”, por estar “um pouco farto de estar sempre na mesma discussão”.

O modelo presidencialista que exclui função de “corta-fitas”

Outra das proposta que se mantém no programa do Chega é a de um modelo presidencialista. Com este mote, André Ventura atirou-se a Marcelo Rebelo de Sousa, mandou uma farpa a António Costa devido a Eduardo Cabrita e apresentou o sistema como uma forma de fugir de “novas geringonças”. “O modelo presidencialista é a melhor forma de evitar novas geringonças, porque os portugueses escolhem com clareza quem querem e o que querem, não há meias nem terços, nas eleições presidenciais há sempre alguém que ganha com maioria, nem que seja numa segunda volta”, explicou.

Desta forma, André Ventura recusa a ideia de que esta proposta pretende “concentrar o poder em ninguém” e defende que o chefe de Estado, como alguém que “tem um poder tão grande ou devia ter”, não tenha uma “função simbólica ou de corta-fitas”, mas sim uma “função com poder real”. “No nosso sistema ninguém se entende e ninguém sabe quem manda em nada. Vejam que o Presidente da República já sugeriu três, quatro, cinco ou seis vezes a demissão de Eduardo Cabrita e para António Costa é o mesmo que nada. Marcelo Rebelo de Sousa disse que não se justificavam novos confinamentos mas para António Costa é o mesmo que nada”, afirmou o líder do partido. Para Ventura, o Presidente da República está “permanentemente a ser desautorizado”  porque “está numa embrulhada de funções”.

Portugal na UE, no euro e longe dos “sonhos do colonialismo”

Foi quase ponto por ponto que André Ventura apresentou o novo programa, desconstruiu as opções e propostas do Chega e afastou a ideia de proximidade a um regime ditatorial, já depois de ter dito também, em relação à educação, que o Chega não defende um sistema salazarista. “Os sonhos do passado, de algum colonialismo ou  de um regresso a 50 anos atrás não nos levarão a parte nenhuma”, apontou, depois de dizer que “ia ser duro”.

A frase surgiu depois de o líder do Chega ter assegurado que a “saída de Portugal da UE seria um desastre a todos os níveis”. Para o partido é preciso promover um “realinhamento dentro do quadro europeu” para “transformar a UE por dentro e não propor a saída de Portugal”. Assim, “independentemente do termo nacionalista, patriótico ou de sentimento nacional” — no Conselho Nacional vai ser discutida a forma como o partido pretende ser descrito — “o programa deve deixar claro que o Chega não defende a saída do euro nem da UE”. Ventura disse ainda “saber que há outras posições” dentro do partido, mas disse que é preciso ter consciência dos “atos e afirmações” e traçou um cenário em que Portugal teria de viver fora de Bruxelas.

Nem PS e BE, nem IL. Ventura cita Margaret Thatcher para justificar opções sobre o Estado

O Estado e o papel do Estado mereceram os primeiros minutos do discurso, com Ventura a explicar que não defende que o Estado seja “praticamente inexistente”, bem como não concorda que “o Estado seja o gigante que hoje é de burocracias e funções acumuladas”. Então, onde fica o Chega no espetro político nacional quando se fala de Estado. André Ventura esclareceu: “Não somos nem o Partido Socialista, nem o Bloco de Esquerda, nem a Iniciativa Liberal, estamos eventualmente num ponto intermédio.”

O líder do partido continuou a explicação ao dizer que o Chega defende um Estado “regulador, que seja em alguns casos prestador e que também tenha uma função social”.

“Nunca defendemos que o Estado não deve ter nenhuma intervenção nas áreas financeiras, de saúde e de educação, etc”, insistiu, para realçar que não está em cima da mesa a ideia de “fim do Estado nem de modelo puramente liberal”.

“Nós não defendemos um Estado completamente fora da saúde e da educação, defendemos um Estado que tenha um papel nestas áreas”, explicou o líder do partido, que não entende “os que defendem que só o Estado deve ter intervenção”. O Chega acredita que o modelo privado e o modelo público “podem coexistir de forma saudável” e é isso que defende para o país. Desta forma, Ventura esclareceu que “destruir a educação pública” não está nos planos do Chega, que pretende que haja “liberdade de escolha” e que o Estado pague o mesmo a todos os alunos e permita que escolham o público ou o privado.

Para sustentar a teoria, Ventura recorreu a Margaret Thatcher: “Não há nada que se possa chamar dinheiro público, o dinheiro é nosso, é de todos.”

Ainda na educação, desta vez sobre a “autoridade dos professores”, recusou a ideia de “modelo salazarista” e referiu que a esta autoridade está “altamente minada”.

Numa frase, explicou ao que vem o programa neste setor: “Não queremos educação totalmente pública nem totalmente privada, não defendemos o fim da escola pública, sim, queremos mais autoridade para os professores e mais liberdade de escolha.”

Também na saúde, a aposta do Chega é a “cooperação” entre público e privado, um “modelo de convivência” que seja capaz de “quebrar o preconceito ideológico” que Ventura disse existir na esquerda relativamente ao setor da saúde. O “foco” deve estar no cidadão e não na disputa entre público e privado, esclareceu, frisando que “apesar das saudáveis divergências ideológicas”, este deve ser um ponto que deve ficar claro.

O Conselho Nacional do Chega reúne-se, esta sexta-feira e sábado, em Sagres, no Algarve, para discutir o novo programa do partido. A discussão chegou a estar marcada para o III Congresso do partido, mas acabou adiada  depois de André Ventura ter decidido, na reunião magna, que seria melhor fazê-lo entre os conselheiros.