Em 1996, quando Inglaterra organizou o Campeonato da Europa e a primeira fase final de uma grande competição desde o Mundial 1966, a banda The Lightning Seeds juntou-se aos humoristas David Baddiel e Frank Skinner para lançar a música “Three Lions”, que se inspirava nos três leões do emblema da seleção inglesa e dizia, a dada altura, que o futebol estava a voltar para casa. Football is coming home, diziam eles. De lá para cá, mesmo depois de Inglaterra ter sido eliminada nas meias finais do Euro 96, a frase tornou-se um autêntico lema dos adeptos ingleses.

Depois de ter sido recuperado em 2018, quando Inglaterra chegou às meias-finais do Mundial da Rússia, o verso tem sido dito e repetido este ano — em que Wembley recebe as meias-finais e a final do Euro 2020 e Inglaterra permanece em competição. Mas porque é que os ingleses acreditam que vivem na casa do futebol? É simples. A 8 de dezembro de 1863, num bar chamado Freemasons Tavern, onze representantes das universidades e das sociedades pioneiras do futebol assentaram as bases e as regras fundamentais para a prática da nova modalidade.

Foi ali, nas mesas do bar que fica a 15 quilómetros de Wembley e que hoje se chama Freemasons Arms, que os porta-vozes de Kilburn, Barnes, War Office, Forest, Crusaders, Perceval House, Blackheath, Kensington School, Crystal Palace, Blackheath School e Surbiton unificaram um desporto que, até aí, ainda era praticado em duas versões diferentes. De um lado, estavam os seguidores do chamado “código râguebi”, que defendiam a legalidade de dar pontapés ao adversário, de fazer rasteiras, de agarrar e de jogar a bola com as mãos; do outro, estavam os defensores do “código Cambridge”, que procuravam reduzir a agressividade e proibir a utilização das mãos (incluindo para os defesas, sendo que nesta altura ainda não existia a figura do guarda-redes).

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Sem consenso total, foram necessárias seis reuniões para chegar a um acordo e tornar públicas as regras oficiais do futebol. Como se sabe, o “código Cambridge” saiu vitorioso e os representantes de Blackheath, os grandes defensores do “código râguebi”, foram expulsos da organização — oito anos mais tarde, fundaram a Rugby Union. Das discussões no Freemasons saíram ainda a fundação da Football Association, a atual FA, a Federação Inglesa de Futebol, e ainda a oficialização das primeiras e fundamentais 14 regras do futebol, as Laws of the Game.

Com o passar dos anos, as regras foram naturalmente evoluindo: o guarda-redes apareceu em 1871, o árbitro em 1872 (ainda que não pudesse estar dentro de campo até 1881), o pontapé de campo em 1873, as balizas com as medidas atuais em 1875 e o penálti em 1881, por exemplo. Ainda assim, e mesmo com a introdução do fora de jogo, da regra do atraso, do VAR e de muitas outras coisas, os princípios basilares do futebol continuam a ser as 14 regulamentações escritas nas mesas do então Freemasons Tavern, em Londres. Um local que, no ano em que o futebol voltou a casa, está de portas fechadas.

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Situado em Long Acre, nos números 81 e 82, o mítico estabelecimento da capital inglesa foi um dos milhares afetados pela pandemia de Covid-19. Está fechado desde o dia 16 de dezembro do ano passado, para além de praticamente abandonado, e tem isso mesmo indicado nas montras, com duas folhas escritas coladas no vidro. “O local está encerrado até que o governo do Reino Unido levante as restrições sobre servir refeições no interior dos espaços”, explicou o gerente ao jornal AS, que esteve no local. Já o dono explica que o momento do encerramento surgiu numa altura em que estavam a realizar “algumas obras” e que é por isso que o bar não está “nas melhores condições”, justificando as cadeiras desalinhadas, o pó, o escadote no meio da sala principal e a acumulação de correspondência na caixa do correio.

“Esperamos reabrir quando acabarem as restrições. Mas já será depois do Campeonato da Europa…”, acrescentou o proprietário do bar, que acertou em cheio. Esta segunda-feira, Boris Johnson anunciou que as restrições associadas à pandemia serão levantadas a partir do próximo dia 19 de julho, ou seja, oito dias depois da final de Wembley. Se é certo que o futebol está a voltar a casa, também é certo que a casa do futebol não tem as portas abertas para o receber.