Ainda que pareça agora uma memória distante, após ano e meio que interrompeu o ciclo natural das coisas e criou um antes e um depois da pandemia, a chegada de Martin Braithwaite ao Barcelona foi tudo menos pacífica. Pelo menos no futebol espanhol. Em fevereiro de 2020, cerca de um mês antes de o mundo fechar portas, os catalães contrataram o avançado dinamarquês, que vinha a dar nas vistas ao serviço do Leganés, para responder rapidamente à lesão grave de Dembélé. O problema? Tudo aconteceu fora da janela de transferências de inverno, 20 dias depois do final do mercado, e graças a uma regra pouco utilizada na liga espanhola.

Mas a história começa antes. Começa no início de janeiro, quando Luis Suárez se lesionou e foi confirmado que iria falhar o resto da temporada. No mercado de inverno, e com a substituição de Ernesto Valverde por Quique Setién à mistura, o Barcelona emprestou Carles Aleñà e Abel Ruiz para encaixar uma almofada financeira para se atirar ao mercado em busca de um avançado. As negociações com o Valencia pelo nome predileto, o ex-Benfica Rodrigo, caíram dias antes do fecho do mercado, Cédric Bakambu, uma solução de última hora que vinha da China, ficou pelo caminho, e Trincão só chegou em julho: à meia-noite de 31 de janeiro para 1 de fevereiro, o Barcelona não tinha contratado ninguém.

Braithwaite, o avançado fruto de uma regra polémica, chegou: mas o Barcelona continua a ferro e fogo

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Os adeptos mostraram-se preocupados, a imprensa espanhola não deixou o assunto passar incólume mas o cenário até nem era, pelo menos nessa altura, dantesco: afinal, o Barcelona continuava a ter Messi, Griezmann, Ansu Fati e ainda Dembélé, acabado de regressar depois de se ter lesionado em novembro num jogo da Liga dos Campeões. O problema foi que, ainda antes de voltar aos relvados e apenas duas semanas depois de ser reintegrado, Dembélé voltou a lesionar-se durante um treino ainda com maior gravidade. Rotura muscular total, cirurgia na Finlândia, final da temporada e teórica ausência do Euro 2020 (que acabou por não se confirmar, graças ao adiamento do Europeu). E o avançado francês voltava a deixar o Barcelona com apenas três jogadores de ataque, sendo que nenhum deles é um avançado-centro de raiz.

E é aqui que chegamos a Braithwaite. Sem um avançado de área claro, com o mercado fechado, com um treinador acabado de chegar e lutas internas entre o plantel e o diretor desportivo Abidal, o Barcelona via-se preso numa encruzilhada numa altura em que faltavam cerca de três meses para o final da temporada. A opção era só uma: ativar um cenário previsto nos regulamentos da Federação espanhola e pedir, com base na extensão da ausência de Dembélé (o avançado francês ficou de fora durante seis meses e o requisito mínimo para esta cláusula são cinco meses), uma janela de mercado individual e extraordinária. A Federação aceitou o pedido e concedeu ao Barcelona 15 dias para contratar um avançado.

FC Barcelona v Sevilla - Spanish Copa del Rey

Com Jordi Alba e Griezmann, ao serviço do Barcelona

Como esta é uma regra interna do futebol espanhol, o Barcelona só poderia contratar jogadores a um outro clube espanhol e estava ciente de que o novo elemento não poderia ser inscrito na Liga dos Campeões. As possibilidades, à partida, eram três: Lucas Pérez, do Alavés, Ángel Rodríguez, do Getafe, e Martin Braithwaite, do Leganés. O último, e também aquele com a cláusula de rescisão mais elevada (18 milhões de euros), foi o escolhido. E o Barcelona anunciou a chegada do avançado dinamarquês , então com 28 anos, que já tinha passado por Toulouse, Middlesbrough e Bordéus mas nunca deixou grandes saudades em nenhum dos clubes.

Braithwaite estava longe de ser um prodígio ou um diamante em bruto. Era uma solução fast food que o Barcelona repetia, depois de na temporada anterior ter assegurado o surpreendente empréstimo de Kevin-Prince Boateng (que não marcou nenhum golo, fez quatro jogos, saiu para a Fiorentina no verão e foi emprestado ao Besiktas em janeiro seguinte). Ainda assim, Braithwaite era o melhor marcador do Leganés, com oito golos: um Leganés que estava em penúltimo, a lutar pela manutenção, que não teve a oportunidade que o Barcelona teve para contratar um substituto para o avançado e que acabou por ser despromovido. Para os adeptos do Barcelona, Braithwaite era um jogador “de segunda” que provavelmente não teria grande sucesso em Camp Nou; para os adeptos do Leganés, Braithwaite era um dos principais ativos numa campanha pela permanência na primeira liga que durou até ao fim da época mas sem sucesso.

Denmark v Finland - UEFA Euro 2020: Group B

O avançado foi um dos primeiros a chegar perto de Eriksen e a pedir ajuda quando tudo aconteceu

Ora, mais de um ano depois, Martin Braithwaite continua no Barcelona. Em 2019/20, na segunda metade da época, marcou apenas um golo e participou em 11 jogos. Já esta temporada, marcou sete e esteve em 41 jogos, saltando quase sempre do banco de suplentes, e ainda conquistou a Taça do Rei. Até que chegamos ao Euro 2020. Na seleção da Dinamarca, o avançado é um dos principais destaques e um claro titular para Kasper Hjulmand, tendo estado nos seis jogos que a equipa fez e marcado um dos golos da goleada ao País de Gales, nos oitavos de final. Braithwaite fez e faz parte do grupo de corajosos dinamarqueses que foi a sensação deste Campeonato da Europa — não só por terem chegado às meias-finais mas também por tudo o que aconteceu com Eriksen e pela reação dos colegas de equipa — e viveu neste verão uma espécie de tranquilidade antes da tempestade. O futuro do avançado no Barcelona avizinha-se complicado, entre a presença de Messi e Griezmann, os eventuais regressos dos lesionados Dembélé e Ansu Fati e ainda a chegada dos reforços Agüero e Depay. Braithwaite, invariavelmente, é o elo mais fraco. Mas, fora dos relvados, a vida corre-lhe bastante bem.

Esta semana, o avançado dinamarquês foi oficialmente considerado um milionário e passou a integrar a lista da Forbes que elenca as pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna avaliada em 250 milhões de euros. Desta forma, Braithwaite é assim apenas o segundo jogador do plantel do Barcelona a estar incluído na tal lista, somente ao lado de Lionel Messi — Piqué não está, Jordi Alba não está, Busquets não está e Griezmann não está, para além de todos os outros. Aos 30 anos, o jogador fez fortuna principalmente através da empresa imobiliária que tem em conjunto com o tio, a NYCE, com sede em Nova Iorque e que impulsiona a construção de casas e edifícios nos Estados Unidos. O dinamarquês é o proprietário de cerca de 1.500 moradias e tem outras 500 em construção, contando com o tio, Philip Michael, para gerir o negócio durante a época desportiva.

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“Fui o padrinho de casamento dele e sou o padrinho de um dos filhos. Isto tudo começou porque a nossa família já tinha estado no negócio imobiliário durante muito tempo. Aqui, nos Estados Unidos, uma das formas de construir uma fortuna e assegurar um futuro financeiramente é investir em terrenos. E é isso que tenho estado a fazer com o meu pai e com o Martin [Braithwaite] desde que vim para cá”, contou o tio do jogador à imprensa dinamarquesa. “O papel do Martin tem muito a ver com o que fazemos em termos de estratégia ou visão a longo prazo. Está sempre envolvido mas nunca demasiado para não se distrair do futebol”, acrescentou, abrindo depois a porta aos objetivos da empresa, que passam por ajudar pessoas com poucos recursos económicos a ter uma propriedade.

“Recentemente, ajudámos cinco mil pessoas, das minorias, a investir em bens imobiliários através da nossa empresa. Queremos ajudar as pessoas a construir fortunas. Essa é a missão”, atirou, detalhando ainda que a principal área de ação da NYCE tem sido em Filadélfia, onde construíram um complexo para estudantes e famílias vulneráveis. Martin Braithwaite, que faz parte da equipa dinamarquesa que conquistou a Europa, também tem estado a conquistar o mundo fora dos relvados.