A soprano Elisabete Matos, diretora do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), está a meio de um mandato, “a gerir dificuldades”, e com um projeto artístico atropelado pela pandemia, como admitiu em entrevista à agência Lusa.

Quando se prepara para anunciar a nova temporada lírica e sinfónica do TNSC (setembro-dezembro), Elisabete Matos faz um curto balanço do cargo que assumiu em outubro de 2019, e que terminará a 30 de setembro de 2022. É a primeira mulher a liderar a direção artística de um teatro de ópera com mais de dois séculos de história, e numa altura em que a instituição está numa fase de requalificação e modernização para que, defende ela, “passe a ser um teatro internacional à séria com todas as condições”.

Elisabete Matos lamenta que grande parte deste ano e meio de mandato tenha sido marcado pela pandemia, com profundas alterações na dinâmica de trabalho do Coro do TNSC e da Orquestra Sinfónica Portuguesa, e que tenha tido implicações no projeto artístico pensado a três anos. “Caiu-me a mosca na sopa. (…) É um projeto que está aqui ‘interrupto’, que não consegui ainda [concretizar]. Durmo muito tranquila sabendo que fiz o máximo daquilo que foi possível fazer, mas gostaria de poder ter a liberdade e de pôr em prática tudo o que auspiciava quando entrei aqui”, disse.

Questionada sobre a disponibilidade para ser reconduzida no cargo, Elisabete Matos apenas disse que a decisão não depende dela. Uma das iniciativas que está ainda por realizar é o desenvolvimento de um estúdio de ópera, um laboratório de formação vocal, musical e cénica para artistas portugueses, cumprindo “uma das missões” do TNSC, de formar talentos e dar-lhes palco.

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“Até este momento não consegui cumprir esse sonho”, disse, também pela razão prática de não poder ainda ter todos os elementos do coro e da orquestra em ensaios conjuntos e em palco, pelas contingências das medidas de contenção da Covid-19. Elisabete Matos quer ainda concretizar uma “programação plural para todos os públicos, abrangendo todos os períodos da ópera, onde a orquestra possa voltar às obras grandes” e em que algumas formações possam apresentar repertório fora de Lisboa.

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Desde que assumiu o cargo, Elisabete Matos fala em gestão de dificuldades e de “uma grande ginástica na gestão de recursos humanos”. “Tudo o que foi feito foi pensado nos corpos artísticos do São Carlos, mas foi feito a pensar em poder trazer para o Teatro Nacional de São Carlos todos os músicos e técnicos, tendo em conta a situação que toda a nossa classe está a viver e que precisa de trabalhar”, sublinhou, perante a paralisação de atividade cultural, por causa da Covid-19.

Elisabete Matos assumiu funções poucos meses depois de os trabalhadores do TNSC, da Orquestra Sinfónica Portuguesa e da Companhia Nacional de Bailado – todos geridos pelo Organismo de Produção Artística (Opart) – terem feito greve por uma harmonização salarial, um regulamento interno de pessoal e melhores condições laborais e de higiene. No verão de 2019, chegou a ser assinado um protocolo de entendimento entre a tutela e as estruturas sindicais, para negociar um acordo de empresa e um regulamento interno de pessoal.

Estando no verão de 2021, a soprano diz que as partes estão “em vias de resolução” do acordo de empresa, e alerta que, “para uma classe artística que cria beleza, a beleza só vem se tiver as condições necessárias para poder criar”. E, neste aspeto, Elisabete Matos sublinha que, além de diretora artística, é uma profissional das artes.

“Se nós no final de tudo isto nos tornarmos uma classe mais unida — a minha opinião é que não somos. Tudo isto veio trazer uma noção de que ou somos um todo e lutamos todos por aquilo que deve ser a nossa classe… [A nossa classe] tem de ter representatividade, [e] tem de ser — por quem nos governa — entendida como tal. Há passos que se estão a dar, mas haverá sempre muito mais para fazer”, disse.

Elisabete Matos terminará o mandato numa altura em que deverá iniciar-se o processo de requalificação e modernização do interior do edifício do teatro lírico português, no centro histórico de Lisboa, classificado em 1996 como monumento nacional.

Segundo a diretora artística, as obras no edifício – abrangendo a estrutura das salas de ensaio e de espetáculo e uma modernização tecnológica – só deverão acontecer em 2023 e 2024, contando com cerca de 13 milhões de euros provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência, e uma carga acrescida de contingências. “É preciso encontrar sítios onde possamos trabalhar. É uma preocupação da tutela encontrar alternativas, para coro e orquestra ensaiarem e atuarem”, disse.

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Nova temporada desenhada “com prudência”

Segundo Elisabete Matos, a programação completa da nova temporada será anunciada em setembro, mês em que deverá também ser revelado quem sucederá a Joana Carneiro, maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, que já tinha anunciado a saída, aprazada para o final do ano. “Há uma escolha feita, está praticamente decidido e será comunicado atempadamente, sobretudo pelo que significa a presença de Joana Carneiro nesta casa”, disse.

A próxima temporada foi desenhada com 1,4 milhões de euros de orçamento, “exatamente igual” ao da temporada anterior, e abrirá, na vertente sinfónica, a 12 de setembro com uma atuação da Orquestra Sinfónica Portuguesa, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, com direção de Joana Carneiro e o pianista Artur Pizarro. Será interpretado o Concerto Si bemol Maior, para piano e orquestra de cordas, de Armando José Fernandes, um dos mais raros, nas programações ao vivo, a par da versão para ensemble do Concerto para Orquestra, de Béla Bartók.

A temporada lírica arrancará a 29 de setembro, no TNSC, com a ópera “Iolanta”, de Tchaikovski, com a soprano russa Zarina Abaeva. Será uma versão de concerto desta ópera, com o coro e a orquestra sinfónica, porque o teatro lírico não tem ainda autorização para utilizar o fosso de orquestra, por causa das medidas de restrição da Covid-19.

“É uma temporada prudente, não na qualidade, porque temos já bastantes convidados, bastantes pessoas de fora, mas prudência porque ainda não ultrapassámos esta pandemia. Por isso é que decidimos, embora a programação esteja preparada até junho [de 2022], decidimos só anunciar de setembro a dezembro, para saber como é que se desenvolve” a pandemia, disse a diretora artística.

Em novembro haverá uma versão “semi-encenada” de “Ariodante”, de Handel, que transita da programação anterior, por impedimentos relacionados com a Covid-19. A estreia está marcada para 2 de novembro, no São Carlos, com encenação de Mario Pontiggia, direção musical de Antonio Florio, o maestro e musicólogo italiano, fundador de La Cappella de Turchini. A interpretação conta com Cecilia Molinari, no papel de Ariodante, Ana Quintans, como Ginevra, e Yury Minenko, em Polinesso.

Para dezembro, foi programada a apresentação, em concerto, da última ópera de Mozart, “La clemenza di Tito”, com Airam Hernández, como protagonista, Susana Gaspar, em Vitellia, e Anne Stephany, em Sesto, com direção de Antonio Pirolli. Da temporada coral-sinfónica, Elisabete Matos destacou o concerto de homenagem a cantores portugueses, a 13 de novembro no TNSC, com a participação das sopranos Dora Rodrigues, Carla Caramujo, da meio-soprano Cária Moreso, do tenor Luís Gomes, do barítono Luís Rodrigues e do baixo João Oliveira.

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Elisabete Matos lamenta que a utilização dos corpos artísticos esteja ainda limitada pela Covid-19, e lembra a “sensação incómoda” de trabalhar com distanciamento, mas sublinha que a pandemia reforçou a intenção de convocar mais artistas portugueses.

“Sempre foi intenção minha, antes da pandemia, de valorizar os nossos artistas. Dentro da qualidade exigida, sempre que houver possibilidade de ter um cantor português com as mesmas qualidades de um cantor estrangeiro, evidentemente que vou escolher um cantor português. É muito importante manter este pensamento de que os nossos músicos e cantores precisam de trabalhar”.

Da programação agendada para 2022, Elisabete Matos disse que será recuperada a ópera “La Bohème”, cuja vida em palco foi afetada em 2019 pela greve dos trabalhadores do TNSC, da Orquestra Sinfónica Portuguesa e da Companhia Nacional de Bailado. No próximo ano deverá estrear-se ainda uma nova composição de Nuno Côrte-Real, encomendada por Elisabete Matos. Quanto ao orçamento para programar a atual temporada, a diretora artística disse que obrigou “a fazer muitas contas”.

“A qualidade tem que entrar dentro do orçamento que nós temos. Quanto mais tivermos, evidentemente que podemos alargar um bocadinho na escolha de nomes. Não quer dizer que não se possam fazer as coisas com a mesma qualidade com pessoas com menos nome. (…) Às vezes é preciso apostar naqueles que começam na carreira”, disse. Sobre a temporada passada, Elisabete Matos recorda que a programação esteve limitada pelo confinamento, pelas restrições em sala, e com natural receio do público.

“Sentimos o medo do público em vir para os locais fechados, que progressivamente está a desaparecer. Agora começamos a sentir que as pessoas vêm com mais confiança, porque sabem que a cultura é segura. Mas houve uma restrição muito grande e diminuição de receita nas entradas do público”, disse. Segundo dados do TNSC, em 2020 foram contabilizados 17.267 espectadores em espetáculos, no projeto pedagógico e nas visitas ao edifício, no centro histórico de Lisboa.