Enviado especial do Observador, em Tóquio

Não é propriamente a modalidade com mais seguidores, mais jornalistas ou mais história mas existe um capítulo em particular que faz do polo aquático uma modalidade mais conhecida do que à primeira vista podia ser: o jogo entre Hungria e União Soviética nos Jogos de 1956, em Melbourne, eternizado depois como o “Banho de sangue na piscina” ou “Freedom’s Fury”, filme produzido entre outros por Quentin Tarantino e narrado por Mark Spitz.

Tendo como contexto a Revolução Húngara de 1956, o encontro foi de uma anormal violência entre as equipas e acabou por ficar sobretudo marcado pelo sobrolho aberto e a jorrar sangue de Ervin Zádor quando saiu da água depois de um murro (ou mais um) de Valentino Prokopov. Além do vermelho que preenchia algumas zonas da piscina, o duelo foi quase uma batalha aberta com os húngaros a aprenderem também algumas falas em russo para colocarem mais irritação no adversário e aproveitarem a sua distração para fazerem funcionar o resultado, como viria mesmo a acontecer (4-0 no final). E ainda teve de ser a polícia a evitar males maiores porque alguns adeptos queriam invadir o local para agredirem a equipa russa, entre insultos e outras coisas mais.

Agora os tempos são outros, não há público e as rivalidades podem existir até com cariz político sem ganharem uma forma doentia como nesse encontro que ficou para a história. E era isso que se jogava esta segunda-feira no Tatsumi Water Polo Centre, muito perto do Tokyo Aquatics Centre onde acabou este domingo a natação, com a Sérvia a defrontar Montenegro já com ambos os conjuntos apurados para os quartos mas sem grande brilho, em especial no que toca aos primeiros que estão no Japão para tentarem defender o título conquistado no Rio de Janeiro. Quase de propósito, esta foi a exibição mais segura, assegurando o terceiro lugar do grupo e um jogo de tremenda dificuldade na primeiro ronda a eliminar diante da Itália, na próxima quarta-feira no mesmo local.

O caminho é praticamente o mesmo, os locais para virar é que mudam. E para aqui vêm muito menos pessoas, acrescente-se: transmissões à parte, que estão numa zona mais baixa da piscina, a bancada de imprensa tem só oito jornalistas a seguir o primeiro encontro do dia a contar para o grupo B, que perante toda a superioridade da Sérvia logo a abrir também não estão propriamente muito mexidos. Transpirar, aí sim, tudo na mesma equipa sem indumentária especial porque, qualquer que seja a cor da camisa ou da t-shirt, o ar condicionado, estando ligado (que parecia não estar), não consegue disfarçar o calor que se faz sentir. É a primeira vez que sentimos algo assim num local de competição fechado nestes Jogos. Com a humidade com que se vem lá de fora, não havia necessidade. Aliás, todo este espaço, apesar de ter bancadas amovíveis grandes, poderia ser uma piscina de uma escola mais avantajada agora engalanada para receber uma competição olímpica de polo aquático.

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Entrada das equipas em campo, todo um protocolo seguido de rituais a cumprir: os jogadores entram um a um por equipa de roupão e chinelos, tendo as toucas e as águas nos bolsos, depois os hinos nacionais ouvidos com a equipa a virar-se de lado para o ecrã onde está a sua bandeira e o adversário a manter a posição, troca de galhardetes entre os capitães como se fazia nos anos 80 e 90, todos os jogadores a deixarem o roupão numa espécie de cacifo que existe em cada canto, toucas com número para a água antes de serem postas, algumas palavras do capitão antes de todos os elementos se atirarem em água e começarem a nadar como os jogadores de futebol fazem aqueles sprints quando entram em campo para o aquecimento, saída dos elementos que não começam de início depois de uma roda de motivação, início do jogo com dois sprinters em grande velocidade.

É aqui que entra Dusan Mandic, campeão olímpico em título, mundial e europeu aos 27 anos. Nascido em Kotor, no Montenegro, o esquerdino começou a jogar polo aquático com apenas sete anos por influência do pai (que mesmo assim preferia o basquetebol mas fez a vontade ao filho) e teve depois de optar aos 16 anos por uma de duas nacionalidades, montenegrino ou sérvio. “Sabia que não poderia cometer nenhum erro porque as duas equipas equipas são super potências da modalidade. Escolhi a Sérvia e não me arrependo. Amo Montenegro e às vezes faço visitas lá, é a minha terra de nascimento. Tenho de admitir que o meu primeiro treino com a equipa nacional da Sérvia acabou por ter influência na minha decisão”, explicou o jogador, num movimento que teve paralelo em Marko Petkovic, nascido em Belgrado mas a representar Montenegro desde 2017.

Depois de ter terminado o primeiro quarto a ganhar já por 6-1, assumindo o estatuto de campeã olímpica ainda em título, a Sérvia resolveu praticamente o jogo que terminaria com um triunfo por 13-6. No final, voltou a imperar o fair play, com todos os jogadores a cumprimentarem-se e alguns deles a saírem em conversa para a zona mista. 65 anos depois, o polo aquático consegue superar as tensões que possam existir no plano político e focar-se apenas no que mais interessa, o jogo, com o respeito a imperar entre as duas equipas (pelo menos no que é possível ver fora de água). A piscina, essa, é bem mais atraente de fora do que por dentro.