A presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, Nancy Pelosi, aproveitou a sua passagem pela assembleia parlamentar da NATO em Lisboa para reforçar o compromisso dos EUA com a aliança do Tratado do Atlântico Norte e relembrar a necessidade da comunidade internacional não esquecer as mulheres do Afeganistão. “O compromisso da América com a relação transatlântica é orgulhosamente um compromisso bipartidário, que reconhece que a NATO é um pilar da paz e segurança em todo o mundo”, declarou a speaker.

Pelosi, que participou na sessão plenária por ter sido galardoada com o prémio Women for Peace and Security da NATO, usou o seu discurso para apaziguar a comunidade internacional sobre o envolvimento dos EUA na Aliança, esgaçado nos últimos anos com a presidência de Donald Trump, que levantou dúvidas relativamente à participação norte-americana. A presidente da Câmara dos Representantes aproveitou para relembrar que convidou o presidente da NATO, Jens Stoltenberg, a discursar no Congresso norte-americano em 2019, como sinal do compromisso com a Aliança: “Foi um dia histórico para nós congressistas e ficámos muito inspirados”, afirmou Pelosi.

As declarações da speaker norte-americana foram no sentido de indiciar a vontade de manter boas relações com os parceiros da Aliança, em particular os europeus. Se o Presidente Joe Biden quis deixar claro que, consigo, os EUA estão firmemente dentro da NATO e que os aliados europeus são prioritários — razão pela qual a sua primeira visita de Estado foi à Europa —, essa declaração de intenções teve o seu momento baixo com a retirada abrupta dos norte-americanos do Afeganistão, sem consultar os seus aliados da NATO.

Nancy Pelosi não esqueceu o tema na sua intervenção em Lisboa. Embora não comentando diretamente a retirada norte-americana, a presidente da Câmara dos Representantes aproveitou para “saudar” a Aliança por ter sido “instrumental para que uma geração de mulheres e raparigas recebessem uma educação que nunca teriam recebido se a NATO e os seus aliados não tivessem estado presentes no Afeganistão”. E também garantiu que os norte-americanos não esqueceram os afegãos: “O Afeganistão está nas nossas mentes e nos nossos corações”, assegurou.

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Democratas e republicanos unidos no apoio à NATO

A questão do compromisso norte-americano com a NATO tornou-se um tópico de preocupação em algumas capitais europeias durante a presidência de Trump, depois de este ter ameaçado sair da Aliança caso os países europeus não aumentassem os seus gastos com a defesa — e tendo até classificado a NATO como “obsoleta”. Nancy Pelosi, líder dos democratas no Congresso, aproveitou o tópico à altura para se distinguir da linha do Presidente.

Tal foi evidente aquando do convite a Stoltenberg para discursar no Congresso, um mês depois de Pelosi ter estado com os líderes da NATO em Bruxelas. À altura, a speaker afirmou a necessidade de “fortalecer” a Aliança. Mas as suas ações tornaram evidente o facto de que, apesar das declarações do Presidente Trump, os dois principais partidos norte-americanos estavam unidos no tema: “Não acho que haja qualquer diferença entre democratas e republicanos no que diz respeito à nossa relação com a NATO”, afirmou à altura a presidente da Câmara dos Representantes.

Isso mesmo parecem confirmar as ações do Congresso, como a da decisão de 2017 (altura em que os republicanos dominavam ambas as câmaras) de aprovar uma resolução que reafirmava o compromisso dos EUA com o Artigo 5 do Tratado da NATO — aquele que prevê que se possa acionar o apoio de todos os países-membros no caso de um deles ser atacado. Para além disso, as sondagens demonstram que este não é um tópico polarizador na política americana: um estudo do Chicago Council Leadership Survey, citado pelo Washington Post, aponta que apenas 5% dos democratas e 11% dos republicanos em cargos de liderança em matérias de segurança são a favor de reduzir o compromisso norte-americano com a NATO.

Pelosi tenta remendar relação dos europeus com os EUA depois da retirada “confusa” do Afeganistão

A passagem de Nancy Pelosi pela Europa e o discurso conciliador sobre o papel dos EUA não acontecem agora por acaso. Se em junho, aquando da visita de Biden à Europa, os líderes europeus se mostravam satisfeitos com o novo Presidente — “A América está de volta ao palco global”, disse mesmo o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel —, a retirada rápida dos norte-americanos do Afeganistão deixou uma mossa considerável na relação transatlântica.

As reações europeias foram evidentes no desconforto com a decisão dos EUA e o facto de não ter sido preparada em conjunto com os aliados europeus. O candidato à chancelaria alemã da CDU, Armin Laschet, disse que este era “o maior falhanço da NATO desde a sua fundação”, o secretário de Estado da Defesa britânico Ben Wallace classificou o entendimento dos EUA com os talibã como “um acordo podre” e o Presidente checo, Milos Zeman, falou mesmo em “cobardia” por parte dos norte-americanos.

Pelosi tem tentado gerir com pinças este dossiê. No início de setembro, a democrata reconheceu que a saída “não foi fácil”: “Não correu tudo certo desde o início, mas foi notável, mesmo tendo começado de forma confusa”, declarou. A presidente da Câmara dos Representantes tem tentado evitar o assunto e focar-se antes na negociação para o aumento do teto da dívida que decorre no Congresso, a par do plano de infraestruturas avançado por Biden.

O tema, contudo, teima em continuar a vir ao de cima. Ainda no final de setembro, o chefe do Estado-Maior dos EUA, o general Mark Milley, declarou perante o Congresso que recomendou ao Presidente que se mantivesse no Afeganistão um contingente de 2.500 tropas para lidar com o avanço dos talibã — uma afirmação que não tinha sido desvendada por Biden em agosto, quando deu a entender numa entrevista à ABC que tinha tomado a decisão de retirar as tropas com total apoio das lideranças militares norte-americanas. Também na semana passada, a embaixadora do Afeganistão nos EUA, Adela Raz, deu uma entrevista ao Axios onde afirmou ter perdido toda a fé no governo norte-americano na sequência da retirada.

Pelosi tem tentado navegar o tema colocando o foco na defesa das mulheres no terreno. Foi isso que fez esta segunda-feira na sua passagem por Lisboa, ao recordar uma viagem que fez a uma zona de província do Afeganistão: “As mulheres, que eram tão pobres, disseram-me ‘Quero continuar a enviar as minhas filhas para a escola, mas não podemos fazê-lo se não tivermos segurança. E não podemos ter segurança enquanto não acabarmos com a corrupção no nosso país”, disse.

Imaginem: mulheres tão pouco sofisticadas mas que entendiam a ligação entre a liberdade e o fim da corrupção. Não podemos nunca esquecê-las”, acrescentou a speaker.

Um discurso em tudo semelhante às declarações que fez recentemente numa entrevista à Atlantic, onde reconheceu que a situação é “muito dramática” para as mulheres no país — mas tentou demonstrar que o governo norte-americano continuará a apoiar as afegãs, ao mesmo tempo que ligou esse apoio ao atual impasse no Congresso. “É por isso que é importante aprovar a resolução que mantém o governo a funcionar [e impede o shutdown]: para que possamos ajudar os que foram afetados com o furacão Ida, mas ao mesmo tempo criamos um instrumento de peso para ajudar à transição dos afegãos”.

A “ascensão da China” e a “corrupção dos regimes autocráticos”

Nancy Pelosi aproveitou ainda a presença na sessão da Assembleia da NATO para elencar aqueles que considera serem os desafios do futuro para a Aliança. “O tempo veio até nós para salvarmos a nossa democracia e o planeta”, afirmou, depois de elencar fenómenos como “a Covid, a crise climática, a cibersegurança e a ascensão da China”.

Um guião que também bate certo com as prioridades da administração Biden, que ficaram explícitas no encontro da NATO de junho. À altura, o Presidente norte-americano tentou puxar os aliados europeus para a questão do confronto com a China, tendo recebido respostas mistas. O secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, garantiu que a Aliança está atenta às “consequências de segurança provocadas pela ascensão da China” e o tema foi incluído no comunicado final do encontro, onde se falava em “desafios sistémicos” colocados pelas “ambições da China e o seu comportamento assertivo”.

Mas nem todos na Europa estão totalmente alinhados com Washington na prioridade de confrontação com a China. O Presidente francês, Emmanuel Macron, aproveitou o seu discurso nessa cimeira para colocar o foco no terrorismo islâmico, dizendo que ele justifica “a presença da NATO na coligação internacional na zona do Iraque e da Síria”, mas não mencionou a China. A União Europeia está também atualmente no meio de um processo de negociação de um acordo comercial com a China que, embora tenha sido travado devido às sanções impostas por ambas as partes, não está completamente afastado.

A França tem sido um dos países que mais tem sublinhado a necessidade de encontrar uma solução de segurança alternativa à NATO e à dependência dos EUA. Depois de em 2019 Macron ter dito que a Aliança do Tratado do Atlântico Norte estava “em morte cerebral”, o país irá agora ser o anfitrião da cimeira europeia sobre segurança do próximo ano. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o alto-representante europeu para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, já deixaram claro que querem avançar com uma nova estratégia de segurança comum aos Estados-membros da UE.

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Nancy Pelosi sobre isso nada disse, mas aproveitou a sua passagem por Portugal para deixar um recado aos líderes europeus, ao destacar a importância da NATO não apenas ao nível militar. “Esta não é uma aliança apenas de segurança, é uma aliança de valores e construída em torno deles”, afirmou, destacando que o combate à corrupção deve ser parte integrante desse esforço. “Com as autocracias a despontarem em tantos lugares, surge a corrupção que lhes está muitas vezes associada”, disse, destacando que essa é “destrutiva”.