Em 26 anos de cimeiras anuais das Nações Unidas sobre as alterações climáticas, apenas sete terminaram no dia marcado para a conclusão dos trabalhos. Negociar um acordo global que possa ser adotado por unanimidade por cerca de 200 países é um processo complexo, que implica cedências que permitam conciliar interesses aparentemente inconciliáveis. Tornou-se, por isso, um hábito que as cimeiras do clima ultrapassem largamente o prazo, tradicionalmente definido para as 18h de sexta-feira da segunda semana da cimeira.

Glasgow não foi exceção e as 18h desta sexta-feira foram ultrapassadas sem que as 197 delegações tivessem chegado a um acordo final. O presidente da cimeira, o britânico Alok Sharma, continuava ao fim da tarde convicto de que seria possível alcançar um texto final ainda na noite desta sexta-feira, com as negociações a estenderem-se pelo resto da noite — numa altura em que já não são as grandes linhas políticas que estão em jogo, mas a redação do texto final, em que as pequenas subtilezas poderão fazer toda a diferença para alguns países.

O primeiro esboço do texto final havia sido divulgado na quarta-feira com uma grande novidade: pela primeira vez na história dos tratados da ONU sobre o clima, foi incluída uma referência explícita à necessidade de eliminar progressivamente o carvão e os combustíveis fósseis como caminho para o cumprimento da grande meta do Acordo de Paris, manter o aquecimento global até ao final do século limitado a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. Cientistas e ambientalistas temeram que a referência pudesse não resistir à ronda de negociações seguintes e já não surgisse no segundo esboço (sobretudo depois de a Arábia Saudita ter vindo dizer abertamente que lutaria contra a discriminação de uma fonte de energia em particular).

Contudo, o segundo esboço, divulgado esta sexta-feira, voltou a incluir aquela referência — e, embora a formulação tenha sido suavizada, a sua inclusão no documento, a confirmar-se, será vista como uma vitória diplomática da cimeira organizada pelo Reino Unido.

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Ao fim de duas semanas de negociações intensas, que têm evidenciado graves diferenças entre os países mais desenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento sobre o grau de compromisso em relação ao abandono dos combustíveis fósseis, o documento final poderá incluir uma referência à matéria, mas com muitas condicionantes, que deixarão uma margem considerável para interpretações diferentes. No primeiro esboço do documento, publicado na quarta-feira, lia-se:

[A COP] convoca as partes a acelerar a descontinuação do carvão e dos subsídios para os combustíveis fósseis.”

No novo esboço, a linguagem é mais específica, mas, ao mesmo tempo, menos comprometedora e menos incisiva:

[A COP] convoca as partes a acelerar o desenvolvimento, implementação e disseminação de tecnologias, e a adoção de políticas, para transitar rumo a sistemas energéticos de baixas emissões, incluindo através da rápida disseminação da produção de energia limpa e da aceleração da eliminação progressiva da eletricidade a carvão e dos subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis.”

Uma das mudanças pode passar despercebida: é a inclusão da palavra “ineficientes”, um pequeno detalhe que deixa margem para a manutenção de alguns subsídios aos combustíveis fósseis (por exemplo, para as famílias mais pobres), e poderá ter sido uma concessão aos países mais dependentes da economia do petróleo. De acordo com a imprensa britânica, um dos argumentos apontados por alguns países é o de que uma eliminação total dos subsídios aos combustíveis fósseis poderá causar grande tumulto social, desemprego e pobreza entre os mais pobres e dependentes dos combustíveis fósseis para os seus quotidianos.

De qualquer dos modos, a manutenção de uma referência à necessidade de eliminar os combustíveis fósseis e a produção elétrica a carvão é, só por si, uma novidade assinalável que, se se mantiver no documento final, será um dos resultados centrais da COP26.

Uma outra diferença substancial no texto prende-se com a questão fundamental da atualização das metas climáticas de cada país, as chamadas “contribuições nacionalmente determinadas” (NDC na sigla inglesa) para as metas globais do Acordo de Paris. Atualmente, o acordo prevê a apresentação de metas atualizadas a cada cinco anos, mas o consenso científico tem apontado, recentemente, para a necessidade de aumentar a frequência destas reavaliações, para que ocorram anualmente.

A manutenção do atual acordo atira a próxima atualização das metas nacionais para 2025. Porém, vários países têm tentado incluir no acordo de Glasgow a obrigatoriedade de apresentar novas metas já em 2022, na próxima COP. Com efeito, no primeiro esboço do acordo final, a presidência da COP26 propunha:

[A COP] insta as partes que ainda não submeteram contribuições nacionalmente determinadas novas ou atualizadas […] a fazê-lo assim que possível em antecipação à 27.ª sessão da COP (novembro de 2022).”

O segundo esboço, por seu turno, inclui uma formulação diferente:

[A COP] relembra os artigos 3 e 4, parágrafos 3, 4, 5 e 11, do Acordo de Paris e solicita às partes que revisitem e reforcem os objetivos de 2030 nas suas contribuições nacionalmente determinadas, como necessário para se alinharem com o objetivo do Acordo de Paris para a temperatura, até ao final de 2022, tendo em conta as diferentes circunstâncias nacionais.”

Há aqui alterações consideráveis. Uma delas é a escolha do verbo, que passa de um mero “instar” a um mais formal e incisivo “solicitar” — resta saber qual a força que a alteração linguística vai ter. Por outro lado, a adição do segmento “tendo em conta as diferentes circunstâncias nacionais” abre as portas a todo o tipo de justificações que poderão ser invocadas mais tarde por países que optem por não avançar com novas metas climáticas.

Outro dos tópicos ainda em discussão prende-se com o financiamento dos esforços de mitigação dos efeitos dramáticos que já se começam a sentir nos países mais pobres e mais vulneráveis (como as nações insulares). O acordo deverá incluir compromissos relacionados com o dinheiro que terá de ser mobilizado pelas economias mais fortes do mundo para ajudar os países mais pobres nestes esforços, mas tem sido difícil chegar a uma formulação final com que os países mais ricos e os mais pobres concordem.

Numa conferência de imprensa esta tarde, Alok Sharma agradeceu os esforços das delegações dos vários países na busca de um entendimento e saudou o “espírito positivo” das negociações, mas admitiu que “um pequeno conjunto de assuntos chave ainda requerem a nossa atenção coletiva urgente”. O presidente da COP26 rematou: “Percorremos um longo caminho ao longo das últimas duas semanas e agora precisamos de uma injeção final de espírito construtivo nesta COP para levar este empreendimento coletivo avante.”

Quem já pediu que o texto final ficasse tal como está o segundo esboço foi o ministro português do Ambiente e Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes. “Acho que é essencial termos aqui mais um dia e uma noite de trabalho para chegarmos a conclusões, mas que o texto não mexa mais porque senão vai ficar mesmo um desastre”, disse à Lusa. “A cada versão que passa é cada vez mais tíbia e espero mesmo que paremos por aqui.” Quão tíbio será o acordo final? A resposta fica adiada para sábado ou domingo.