“Focámo-nos num problema sem solução.” É assim que Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM), começa a explicar o projeto que está a coordenar.

Para perceber porque não tem solução, é necessário um breve contexto sobre o tema: cancro da mama. Primeiro, as boas notícias: apesar de ser um dos mais frequentes – o tipo de cancro mais diagnosticado nas mulheres –, a taxa de cura atualmente ronda os 70%.

Mas os tumores não são todos iguais e aquilo que chamamos “cancro da mama” são, na verdade, doenças com características, tratamentos e prognósticos diferentes. Há três grandes sub-tipos: o cancro hormono-dependente, positivo para os receptores hormonais de estrogénio ou progesterona, habitualmente tratado com terapêutica hormonal; o HER2 – positivo para o fator de crescimento epidérmico tipo 2 –, cujo tratamento inclui medicamentos que atuam nessa proteína alterada; e o triplo negativo, assim chamado porque não é identificado nenhum desses três receptores. E, exatamente, por não haver um tratamento dirigido a um receptor-alvo, as opções de tratamento são menos eficazes. E este é o primeiro problema ainda sem solução.

O segundo problema é que nem todos os cancros são detetados numa fase inicial, quando ainda estão localizados num órgão. Quando há metástases, significa que há células malignas disseminadas pelo corpo. Ora, o cancro metastizado é tratável, mas, praticamente incurável. E um dos sítios preferidos para a metastização do cancro da mama é o cérebro. E aqui está o terceiro problema: é muito difícil fazer chegar medicamentos ao sistema nervoso central.

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“Dos medicamentos que se conhecem, só cerca de 2% chegam ao cérebro”, diz o investigador. “É um órgão menos conhecido, por comparação com os outros, e é difícil conseguir fármacos que cheguem ao sistema nervoso central”

Quando Miguel Castanho diz que que se focaram num problema sem solução é a estes obstáculos que se refere. E o seu ambicioso projeto está focado em solucionar os três: “criar um fármaco que consiga matar as células do tumor triplo negativo, que inative as células metastáticas que já estão livres e em circulação, e que consiga chegar ao cérebro e eliminar as metástases”.

Para tão titânica tarefa, reuniu-se um consórcio internacional, com duas equipas portuguesas e duas espanholas. Na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, o grupo de João Gonçalves (do Instituto de Investigação do Medicamento) produziu um fragmento de anticorpo para um receptor presente nas células do cancro triplo negativo, o Frizzled (Fzd). No IMM, o grupo de Miguel Castanho está a trabalhar na molécula que vai servir como transportador do fármaco até ao cérebro.

O cérebro é um órgão tão importante que evoluímos para que isso seja difícil. Está protegido pela barreira hematoencefálica, isto é, pelas paredes compactas da rede de artérias cerebrais, por onde só passam moléculas que têm receptores e transportadores específicos.” Ora, um dos grandes interesses de investigação de Miguel Castanho tem sido precisamente este: fazer chegar fármacos ao cérebro.

“Por exemplo, a glucose sanguínea, que é necessária ao cérebro, tem um transportador específico para passar esta barreira hematoencefálica, mas um fármaco – que na maior parte das vezes é uma molécula que não existe no nosso corpo – não tem esse transportador.” Isto protege o cérebro de compostos neurotóxicos que lhe seriam prejudiciais, mas tem um reverso: “dos medicamentos que se conhecem, só cerca de 2% chegam ao cérebro. E esta é uma das razões pelas quais estamos tão atrás no combate às doenças mentais e do cérebro de uma maneira geral – não só porque é um órgão menos conhecido, por comparação com os outros, mas também porque é difícil conseguir fármacos que cheguem ao sistema nervoso central.”

Depois de feita a fusão destas duas moléculas portuguesas – a que mata as células tumorais e a que a que a transporta para o cérebro –, entram em campo as duas equipas espanholas. O Biodonostia Health Research Institute, em San Sebastián, vai fazer testes muito específicos em modelos animais – que têm de desenvolver uma doença semelhante à dos humanos – para determinar doses, formas e frequências de administração. A Asociación Centro de Investigación Cooperativa en Biomateriales, também no País Basco, fará o seguimento em imagiologia do percurso da molécula pelo corpo. “Isso permite ver se parte dela vai para onde queremos (o cérebro), se se acumula em algum outro órgão e se subsiste tempo suficiente no corpo para ter a ação pretendida”, explica o cientista.

Neste momento, em Lisboa, está a ser feita a fusão das duas moléculas, a anti-tumoral e a de passagem da barreira hematoencefálica. “A seguir vamos testar se a nova molécula, que combina as duas, mantém tanto a capacidade de matar a células tumorais, como a de passar a barreira hematoencefálica. Vamos confirmar se, com a fusão, não se perde a funcionalidade de nenhum dos componentes”, esclarece o cientista. Este é um projecto que integra o esforço do recém-criado iMM Laço Hub, um laboratório focado na investigação em cancro da mama metastático, que permite um fio condutor na investigação nesta área realizada no instituto.

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O laboratório liderado por Miguel Castanho dedica-se à Bioquímica Física de Fármacos. São duas palavras que não costumam aparecer juntas, “bioquímica” e “física”. É uma área menos focada em aspectos tradicionais da bioquímica, como o metabolismo, e mais na estrutura das moléculas e na forma como interagem entre si. “A ligação de um anticorpo a células tumorais é um processo físico: não há formação de ligações químicas entre os dois. Há, literalmente, um encosto físico entre ambos.”

A isto chama-se bioquímica física ou biofísica molecular, e é uma área de estudo central na criação de terapêuticas inovadoras. “Tudo começa por definir um alvo terapêutico. E, quando pensamos numa molécula que interfira com esse alvo, na maior parte das vezes estamos a pensar num processo físico, numa molécula que consiga encaixar naquela e, com esse encaixe, imobilizá-la ou tirar-lhe a funcionalidade.”

Parece simples, assim descrito, mas o investigador garante que a descoberta de novos medicamentos é a história do caminho marítimo para a Índia:

Metemo-nos no barco sem saber se ele aguenta a viagem toda ou não, mas temos de fazer isso. Há muitos naufrágios, mas um dia chega-se lá.”

Agora, no laboratório que coordena, além de estar a tentar chegar a bom porto no tratamento do cancro de mama triplo-negativo, o investigador está também apostado em desenvolver uma forma de prevenção dos efeitos neurológicos de alguns vírus. O projeto começou com o vírus Zika, tão temido pelas grávidas por dar origem à microcefalia do feto. “Nas áreas do globo afetadas, uma mulher grávida vive em ansiedade durante nove meses. Estive no Brasil e é uma dor ver uma grávida, com 40 graus à sombra, a usar calças, manga comprida e gola alta, com um medo terrível de ser picada por um mosquito. Coisa que não se consegue evitar por completo.”

“Quem trabalha com problemas delegados pelos outros pode, a qualquer momento, dizer: ‘vou desligar disto e entrar na minha vida’. Mas a questão sobre a qual o cientista se interroga é um problema gerado pelo seu próprio intelecto. Temos dificuldades em desligarmo-nos de nós próprios”

O grupo de Miguel Castanho iniciou um projeto com o objectivo de desenvolver medicamentos antivirais que pudessem ser ativos contra o zika, mas também contra o dengue e outros vírus que consegue chegar ao cérebro. “Queríamos uma molécula que desse para todos os vírus transportados pelos mosquitos do género Aedes, designados mosquitos tigre, até porque, com as alterações climáticas e o aquecimento global, as populações destes insectos vêm avançando para norte. Quase todo o sul da europa já tem populações residentes de mosquitos e, mais tarde ou mais cedo, vamos ter esse problema: surtos de doenças causados por dengue, zika e outros vírus transportados pelos mosquitos Aedes.”

A convite e com financiamento da Comissão Europeia, Miguel Castanho incluiu também o SARS-CoV-2 neste estudo, já que o vírus pode causar sequelas neurológicas. Mais uma vez, a ideia é fazer uso daquilo em que se tem vindo a especializar: a passagem do medicamento através da barreira hematoencefálica, para poder entrega-lo onde ele faz falta – no cérebro.

Desde criança que o cientista gosta da natureza em geral – e dos peixes em particular. “Era uma paixão. Pescava e, mais tarde, também me interessei por aquariofilia.” As leituras e aulas na adolescência, no liceu Sá da Bandeira, em Santarém, fizeram o resto. Ainda houve uma indecisão entre escolher Medicina ou Bioquímica, mas arriscou e escolheu esta última, ainda que tenha sido muito difícil, na época, sem internet, perceber se se ajustaria ao que realmente queria. Concluída a licenciatura, na faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fez o estágio no departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico. “Foi uma transição pouco comum, mas muito importante: Juntei os conhecimentos que tinha da bioquímica com um rigor mais próprio da engenharia.” Tão importante que foi lá que fez o seu doutoramento, também em Química.

Hoje, aos 54 anos, além do grupo de investigação no iMM, é professor catedrático da Faculdade de Medicina, onde dirige também o Instituto de Bioquímica. O interesse por peixes mantém-se, mas o tempo para a pesca e para a aquariofilia desapareceu desde que foi pai. “A ciência e a parentalidade são duas coisas que ocupam muito tempo, monopolizaram a minha vida e passou a restar pouco para o resto.”

Miguel Castanho com alguns elementos da equipa que coordena no IMM: Joana Lopes, Catarina Gonçalves, Daniel Gavino, Beatriz Vieira da Silva e Diogo Mendonça

Apesar disso, não trocava a vida dedicada à ciência por nada: ser cientista é gerar conhecimento e isso é uma recompensa que se basta por si só. “É claro que é um grão de areia numa praia enorme, mas a praia é feita de grãos de areia.” Além disso, acrescenta, ser investigador permite alguma liberdade intelectual – até criativa – e de uso do tempo. Apesar de isso ser tanto uma bênção como uma maldição: “É fácil perder a noção dos limites. Não é por acaso que os cientistas têm fama de distraídos.”

Essa dificuldade em estabelecer limites de tempo para o trabalho parte da essência do que se faz. “Quem trabalha com problemas delegados pelos outros, como médicos ou advogados, pode estabelecer fronteiras. Pode, a qualquer momento, dizer: ‘vou desligar do problema do outro e entrar na minha vida’. Mas a questão sobre a qual o cientista se interroga é um problema gerado pelo seu próprio intelecto. Então, temos dificuldades em desligarmo-nos de nós próprios. O trabalho persegue-nos como uma sombra.” Por agora, sabemos que quando parecer distraído, estará provavelmente focado nesta causa: encontrar uma forma de tratar o cancro de mama metastático.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Protecting the Brain from Metastatic Breast Cancer, liderado por Miguel Castanho, do IMM, foi um dos 30 selecionados (12 em Portugal) – entre 644 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 632 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 25 de novembro. Os prazos para a edição de 2023 deverão ser conhecidos no verão.