A experiência foi traumática para boa parte da esquerda: há um ano, os candidatos apoiados pelo PCP e BE para as eleições presidenciais confrontavam-se com o estilo agressivo de debate de André Ventura e mostravam dificuldades em contorná-lo. Talvez por isso, no confronto que opôs Ventura a Catarina Martins este domingo, a líder do Bloco de Esquerda mostrou-se determinada em manter a calma e não ser arrastada para temas que não desejasse debater – mas a estratégia escolhida fez com que em vários momentos acabasse por deixar desafios de Ventura no ar, abdicando de fazer o contraditório.

Na memória ainda estão frescos os debates do líder do Chega contra João Ferreira e Marisa Matias, em janeiro passado. No primeiro, os dois interromperam-se de tal forma que se tornou difícil seguir a troca de argumentos; no segundo, Matias entrou no campo dos insultos e acusações (“vigarista”, “cobarde”) e o balanço — até dentro do partido — não foi positivo. Com essa análise em mente, Catarina Martins mostrou-se sempre controlada, aparentemente imune a provocações e com um objetivo claro na cabeça: levar Ventura a discutir sobre os seus temas de eleição – corrupção e apoios do Estado – para tentar desmontar os argumentos do adversário e provar as suas contradições no seu próprio terreno de jogo.

Foi o que tentou fazer assim que, aos poucos minutos de debate e evitando responder a perguntas sobre cenários pós-eleitorais e estratégia política, definiu o tema que dominaria quase todo o debate: a corrupção. Contra Ventura atirou os offshores, os vistos Gold, falou da “extrema-direita caladinha” sobre estes assuntos para pintar o Bloco como o inimigo principal do Chega – mas faltou responder a desafios lançados por Ventura, como explicar se o BE chumbou as propostas do partido para duplicar as penas por corrupção. O silêncio ficaria no ar e Ventura não largaria a pergunta até ao fim.

Quanto à ideia de “subsidiodependência” e às críticas aos apoios atribuídos pelo Estado, a mesma tática: desmontá-los, lembrando que só uma pequena percentagem da população portuguesa – e dos Açores – recebe essas ajudas, percentagem essa a que Ventura “tem raiva e quer punir”. Catarina Martins chegaria mesmo a usar o Papa Francisco contra André Ventura, lembrando as frases do chefe da Igreja Católica em defesa dos migrantes ou contra os grandes interesses económicos.

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Ainda lhe dedicou um ataque final, lembrando a condenação pelos ataques à família do bairro da Jamaica que Ventura ofendeu (“Um candidato condenado por racismo. É a primeira vez em 40 anos de democracia”), mas, na tentativa de controlar o tom e o rumo do debate, escusou-se a atacar – mesmo quando não era assim tão difícil encontrar argumentos — e nos momentos em que foi alvo da ‘metralhadora’ Ventura não saiu do guião rígido que tinha definido.

Ventura: ataques constantes, pedidos de “respeito”

Se foi notório que parte da estratégia de Catarina Martins foi não se tornar a Marisa Matias daquele debate das presidenciais, a tática de André Ventura baseou-se num ataque direto a Catarina Martins e ao Bloco de Esquerda. Fosse qual fosse o tema, servia a profissão da coordenadora do partido: “Percebe-se por que é que a Catarina Martins era atriz, é uma excelente atriz.” E não só: palavras como “mentiras” ou “falácia” também não ficaram fora do plano de Ventura.

“Fico nervoso porque os portugueses estão fartos das suas mentiras”, interrompeu o líder do Chega numa das vezes em que Catarina Martins tomou a palavra.

Ao longo do debate, com os desafios lançados a Catarina Martins declinados pela própria pela falta de resposta (e com mudanças constantes de tema), Ventura apostou em manter a estratégia e, apesar de nem sempre ter imposto ideias por cima da coordenadora do BE como aconteceu em janeiro com Marisa Matias, aproveitou momentos chave para passar a ideia de que não havia resposta possível. Foi o que aconteceu no tema da corrupção, em que Ventura lançou o desafio, ficou sem resposta e argumentou que Catarina Martins não tinha como responder porque não sabia.

E exatamente da mesma forma, puxou dos trunfos que tinha levado para sair por cima da discussão. Para isso, até o tema do salário dos deputados — “o nosso salário”, como lhe chamou para comprometer a adcersária — trouxe ao debate. “Apresentei a redução do nosso salário, de nós os dois, sabe como é que votou? Contra. Seja séria para os portugueses, não venha aqui mentir, votam sempre contra quando toca ao vosso bolso ou ao bolso do vosso partido”, atacou o líder do Chega.

Perante os vários ataques à “extrema-direita” feitos por Catarina Martins — que fez questão de chamar o Chega desta forma — André Ventura ainda usou mais uma defesa em jeito de ataque: “Não lhe chamo extrema-esquerda, vou respeitá-la mais do que a mim.”

Num debate em que os temas foram maioritariamente trazidos por Catarina Martins e Ventura jogou sempre no contra-ataque, o tema da governação quase ficou arrumado nos primeiros minutos, altura em que o líder do Chega atacou o PSD por “não ter cumprido” nos Açores e onde garantiu que o partido “tem exigências” e que não vai abdicar delas, nomeadamente com a presença em “ministérios concretos”.

O objetivo de Bloco de Esquerda e Chega até pode ser o mesmo – chegar a terceira força política nestas eleições – e a importância estratégica semelhante – porque um futuro Governo, de esquerda ou de direita, pode depender do seu apoio – mas o debate acabou assim por ter pouca diversidade temática, por ter poucas incursões por temas paralelos ou táticas políticas e poucos assuntos que pudessem mudar as opiniões de algum espectador, uma vez que os eleitorados-alvo de cada um dificilmente se cruzarão.

O diálogo mais revelador

Catarina Martins: “André Ventura é um condenado com trânsito em julgado por racismo.”

André Ventura: “É falso, Catarina, está a mentir.”

Catarina Martins: “É, aliás, a primeira vez que temos alguém a candidatar-se a eleições nos 40 anos de democracia nesta situação. Eu sei que se orgulha da condenação do Supremo Tribunal de Justiça que diz que as suas declarações são racistas, mas o racismo, a política de humilhar as pessoas é profundamente errada. Levantar-me-ei contra essa política todos os dias. Este país que se choca com Odemira, que faz do racismo um negócio e violência todos os dias sabe que precisa da força do BE para termos um país decente, uma política decente que é o oposto da política da mentira e do ódio que a extrema-direita representa e que o BE vai derrotar.”

André Ventura: “Um bocado de estudo de direito não lhe fazia mal. Eu não fui condenado por racismo, sei que de direito talvez perceba pouco. Eu fui condenado por ofensas a uma família, não tem nada a ver com racismo. Nunca fui condenado em nenhum processo crime e isso deixa-me um orgulho enorme de poder continuar a lutar pelos portugueses de bem e por bandidos que os senhores defendem no nosso partido há não sei quantos anos.”