O duo Christopher Miller e Phil Lord chamou a atenção com “Chovem Almôndegas”, uma animação com um humor muito acima da média. Daí até serem responsáveis por adaptações para o grande ecrã como “21st Jump Street” – e a sequela – ou “O Filme Lego” foi um instante. Na televisão também têm dado uma mãozinha, como “Brooklyn Nine-Nine”, “How I Met Your Mother” ou “The Last Man On Earth”. Tudo comédias. Por isso, não é surpresa que a Apple os tenha ido buscar, seguindo a estratégia de conseguir o melhor talento para criar conteúdo para a sua plataforma de streaming e produção. É assim que chegamos a “The Afterparty”, série de oito episódios – os três primeiros estarão disponíveis na Apple TV+ nesta sexta-feira – criada e realizada por Christopher Miller, com Phil Lord enquanto produtor executivo.
A premissa é simples e não perde tempo a colocar-nos na posição de detetive criminal. Há uma reunião de liceu, muita gente envolvida com diferentes interesses e, na continuação da festa, é cometido um crime. “The Afterparty” arranca com esse crime e passa de imediato para a chegada dos detetives que irão tentar descobrir o mistério. Até aqui pouco de novo, o truque que implementa é o de tornar cada episódio à volta da versão de uma personagem e, a partir daí, juntar as peças e criar uma trama que torna difícil a tarefa de decifrar quem pode ter cometido tal crime: após sete episódios vistos, é ainda difícil apontar o dedo a uma personagem.
[o trailer de “The Afterparty”:]
Christopher Miller inspira-se no modelo de “Rashomon”, o filme de Akira Kurosawa que popularizou este tipo de narrativa: é contada a partir do ponto de vista de cada personagem, com perspetivas contraditórias, e a verdade encontra-se ao juntar todas as peças. Contudo, fá-lo consciente de que o espectador – especialmente o televisivo – tem outras ferramentas disponíveis e já foi demasiadas vezes exposto a esta ideia. Por isso, o modelo acontece sem se levar muito a sério, havendo sempre a ideia de que as personagens sabem que isto está a acontecer e estão num jogo constante com essa noção. Assim, o modelo não se torna repetitivo e cada história/episódio opta por um modelo/género diferente, quebrando assim alguma possível monotonia de ouvir a mesma história múltiplas vezes. Mesmo com a tal perspetiva distinta.
O modelo resulta. “The Afterparty” é assumidamente uma série de humor, só que esta configuração permite que se crie uma espécie de clube do mistério dentro da casa onde se passa toda a ação: com todas as personagens a tentar encontrar a solução enquanto, ao mesmo tempo, estão – ou não – a cobrir o rasto do seu crime.
Eis então o crime. Quem morre é o dono da casa, Xavier (Dave Franco, irmão de James Franco). Casa que é, na verdade, uma luxuosa mansão, uma vez que Xavier se tornou o tipo popular do grupo: de patinho feio da escola a estrela pop/ator que toda a gente idolatra. É um valente imbecil, como seria de esperar, e vai à reunião de liceu para ajustar certas contas (leia-se: ter sexo com uma das personagens que anteriormente o havia recusado). Vistas bem as coisas, ele próprio tem a sua vingança particular em mãos.
Quem o fez? Terá sido Aniq (Sam Richardson), um argumentista de Escape Rooms que está farto de ser ridicularizado por Xavier? Brett (Ike Barinholtz), porque Xavier anda a fazer-se à sua ex-mulher? Yasper (Ben Schwartz), porque quer cobrar a Xavier uma colaboração musical (que tem ligações ao passado de ambos)? Chelsea (Ilana Glazer), por causa de um evento traumático do passado que recusa falar? Zoe (Zoë Chao), a rapariga desejada do liceu, que tinha muitas aspirações e que continua no liceu (a trabalhar lá)? Ou nenhum deles?
Cada um faz a sua parte e esse é um dos detalhes deliciosos de “The Afterparty”: as personagens têm uma agenda a que se mantêm fiel, quer dentro como fora das entrevistas. Não por uma questão de coerência, mais por uma ideia de metanarrativa. Às tantas, tudo parece uma espécie de jogo de um dos Escape Rooms de Aniq. Não entenda isto como um spoiler, mas como uma adivinha (e se for certa, é algo que vem sugerido logo na primeira tranche de episódios), porque às tantas as personagens ausentam-se tanto da responsabilidade do crime, que a ideia de que é tudo um jogo – sugerido muitas vezes pela forma cómica com que as personagens vestem as personagens dentro das personagens – torna-se na única solução plausível.
Se assim o for, parabéns. Parabéns pela forma como Christopher Miller cria um clube de mistério de forma gradual, que conjuga bem as movimentações das personagens, o fluir da narrativa e a perceção do espectador. E acontece com humor, combinando bem elementos de séries criminais/mistério com a articulação para a piada da dupla Miller/Lord.