E de repente, quase ao cair do pano, o georgiano Denma Gvasalia montava um cenário tão turbulento quanto de resistência, dispondo maxi t’shirts com as cores da bandeira da Ucrânia em cada cadeira destinada aos convidados, e fazendo as manequins desfilar sob inesperada intempérie. A história da Semana da Moda de Paris conta-se com o simbólico azul e amarelo, à boleia do diretor criativo da Balenciaga, outrora uma refugiado, mas também com uma série de outros gestos de protesto. Com a guerra a dar o tom desde o primeiro dia do certame (que decorreu entre 28 de fevereiro e esta terça-feira, 8 de março), manequins como Micaela Argañaraz e Bella Hadid lançaram uma campanha para doar os seus honorários ao povo ucraniano (a que se associou outra super estrela, Gigi Hadid, entre outros nomes), grandes conglomerados de luxo como a LVMH juntaram-se ao coro de pesar e endereçaram milhões de euros de apoio, o êxodo das marcas de território russo foi prosseguindo a ritmo mais acelerado que o habitual, e a bandeira bicolor continuou a esvoaçar por desfiles como o de Isabel Marant.

O regresso de Marine Serre, a homenagem a Virgil Abloh, a Lavin ainda em formato digital, a The Row a limitar o acesso a clientes, e a Louis Vuitton, habitualmente escalada para o último dia, a apresentar a 7, encontraram-se pelo caminho com Dior, Chloé, Saint Laurent, Loewe, ou Chanel e Miu Miu — e ainda com a Alter Designs de Pauline Ducruet, filha de Stephanie do Monaco, neta de Grace Kelly, ou a explosão cor- de-rosa de Valentino. No total, 45 apresentações físicas.

Entretanto, Saint Honoré ganhou uma nova flagship store da Burberry, bem ensanduichada entre a morada da Chanel e da Dior, que por sua vez viu a sua histórica morada na Avenue Montaigne renovada de fresco. Siga alguns dos destaques.

Off-White

De Serena Williams à mãe Cindy Crawford acompanhada pela filha Kaia Gerber — houve espaço para vários passageiros VIP nesta viagem pela “Nave Espacial Terra”, como se apresentou o emotivo desfile-tributo a Virgil Abloh, que marcou o arranque da Semana da Moda de Paris. À grande montra Off-White, que arrancou pelas oito da noite de segunda-feira, juntaram-se nomes como Rihanna, A$AP Rocky, Idris e Sabrina Elba, Pharrell Williams, e ainda o CEO da Louis Vuitton e um leque de designers como Jonathan Anderson, Olivier Rousteing, Matthew Williams, Guram Gvasalia, e Jerry Lorenzo — isto para não falar da constelação que pisou a passerelle, de Maria Carla a Bianca Balti, sem esquecer Karlie Kloss e Helena Christensen. A metáfora cobriu dois momentos. Primeiro, tempo para revelar a coleção de pronto-a-vestir para o outono 2022. De seguida, para dar a conhecer a nova linha high fashion da marca (uma outra forma de apelidar as criações de alta-costura, dispensando o peso do conceito) — começou por ser desenhada por Abloh, que morreu em novembro passado, e foi terminada pela equipa de criativos e colaboradores que o acompanharam. Pioneiro do techno, Jeff Mills deu música à “Experiência Imaginária” concebida por Virgil.

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Saint Laurent

Imagine um armário aos pés da Torre Eiffel repleto de indispensáveis de culto, peças-chave de corte, materiais e acabamento impecáveis. Uma cápsula celestial em tons negros (cor de conforto para o mestre fundador) composta por muitos blazers e casacos de ombros bem vincados, trench, smoking, (na versão atualizada do famoso Le Smoking lançado por Yves Saint Laurent em 1966), biker, longos sobretudos faux fur, slip dresses, saltos imaculados e outros luxuosos básicos — faltou acrescentar o sufixo “perfeito” a cada item enumerado. Em equipa que ganha mexe-se apenas com a subtileza Saint Laurent e do belga Anthony Vaccarello, que apresenta esta coleção quando passam 60 anos sobre o primeiro desfile do famoso couturier. Prontas para aplaudir, uma legião de estrelas não faltaram à chamada, como o elenco de Euphoria, Catherine Deneuve, Victoria e Romeo Beckham ou Demi Moore.

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Chanel

Tweed e galochas, eis uma combinação que passa a ser provável quando o assunto é Chanel e uma viagem ao countryside escocês conduzida por Virginie Viard Grand Palais afora. Casacos apropriados para caça com múltiplos bolsos e coloridas meias que aconchegam as pernas não ficam reféns em absoluto do mundo rural e dessa evocação de Gabrielle Chanel. Viard assume a costela urbana da coleção para uma pitada de swinging London saída dos anos 60, capaz de convencer o público jovem que geração após geração continua a render-se a esta dupla de C’s entrelaçada.

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Louis Vuitton

Masculino/feminino, feminino/masculino? As fronteiras esbatem-se com o alto patrocínio de Nicolas Ghesquière que se instalou no cenário mágico do parisiense Musée d’Orsay, entre estátuas de outros tempos e deslizantes criaturas em linha com os imperativos contemporâneos. A fluidez concretiza-se com calças maxi e casacos hiper oversized — camada sobre camada de prático exagero — femininos vestidos pichi com providenciais bolsos sobre golas altas e gravatas floridas. Por outras palavras, basta pregar os olhos nos ombros para perceber que Paris tem costas largas — e usa carteiras pequenas. Está encontrada a fórmula para os meses que se seguem.

Rick Owens

Esbanjar solenidade com um casaco verde água? Vai voltar a pensar duas vezes se por tradição responderia “impossível”. Rick Owens sintonizou a Sinfonia Nº5 de Gustav Mahler, transpôs a banda sonora de “Morte em Veneza” para o Palais de Tokyo, e pôs as manequins a desfilarem passerelle fora carregando máquinas de fumo e acessórios que evocavam o transporte de incenso pelas igrejas, enevoando um evento que foi subindo degraus na escadaria do sublime. Uma liturgia para ver e rever de olhos bem abertos.

Dries van Noten

As fotografias de Casper Sejersen e o styling de Nancy Rhode chegam e sobram para compor o moodboard da próxima estação. A secundar as imagens, o filme de oito minutos dirigido por Lisa Immordino Vreeland, com o som de ‘Dream Baby Dream’, dos Suicide, e a nostalgia do futuro inspirada no filme-testamento de Marcello Mastroianni, ‘Mi ricordo, si, io mi ricordo’. Com a tónica de novo nos casacos, sob a batuta do belga Dries Van Noten as formas são arredondadas, o print é animalesco quanto baste e a atitude pode ser cénica à sua vontade.

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Dior

“Quero encetar um diálogo entre tecnologia e o nosso quotidiano”, afirmava nos bastidores Maria Grazia Churi, citada pelo The Guardian. E assim a Dior unia forças à inovação, desenvolvimento e pesquisa da D-Air Lab, para um resultado a que se chamaria um futuro-presente da moda. Um bodysuit com um circuito flurorescente cruzou-se com a reinvenção do famoso New Look, perante um conjunto de propostas high tech pouco tranquilizadoras para os tempos que correm — mas, enfim, quando planeou esta coleção outono-inverno dificilmente a timoneira da Dior imaginaria uma tétrica guerra em pano de fundo. Quem conseguiria distrair atenções dos prodígios criativos? Ah, a pré-mamã Rihanna, claro, que continua a sua cavalgada risqué pelas semanas da Moda, desta feita ousando com um revelador conjunto completo de lingerie com cristais Swarovski, um longo casaco de pele, e um já lendário “no shit” quando do público a censuraram por chegar atrasada. Com a atmosfera do evento a cargo da artista feminista italiana Mariella Bettineschi, pela passerelle passaram corpetes para uma “Nova Era”, uma nova geração de malhas, vestidos femininos e intermináveis luvas desportivas, e o incontornável tailoring, num encontro de Matrix com Dune.

Valentino

Esqueça o Very Peri, pelo menos por breves instantes, ou até o icónico vermelho Valentino. Pierpaolo Piccioli introduziu uma revolução no pantone e o resultado é um invencível xadrez cor-de-rosa, num tabuleiro aqui e ali pontuado por uns quantos peões a negro — e uma aparição de Zendaya, a namoradinha por excelência da marca italiana e coqueluche em geral. Com os 81 figurinos apresentados num registo bloco total, foi possível dirigir o foco para o detalhe e para as silhuetas — e ainda desfazer ideias com prazo mais que vencido. Sim, o rosa também é para meninos e há muito que abandonou o culto estritamente girly.

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Balenciaga

Kim Kardashian embrulhada em fita adesiva amarela Balenciaga? Sai mais um instantâneo para a posteridade, desta feita depois do reencontro com a Balenciaga. Kim, ela própria de origem arménia, não faltou à chamada do amigo Demna, cujo foco inicial na emergência climática rapidamente deu lugar a outra urgência, tal o alvoroço na agenda europeia.

“A Semana da Moda parece um absurdo. Por momentos pensei cancelar o desfile para o qual eu e a minha equipa tanto trabalhámos. Depois pensei que cancelar seria uma rendição, uma rendição ao mal que tanto me magoou por 30 anos. Decidi que não posso mais sacrificar-me por esta guerra de ego sem coração nem propósito”, descreveu Demna, recordando o seu percurso enquanto refugiado. Nascido na Geórgia, em 1981, o também co-criador da Vetements, que apresentou a sua sub marca nesta edição da Semana da Moda (VTMNS), escapou do país, fustigado pela violenta guerra civil, com apenas 12 anos. Todos estes anos depois, recorda a passagem pela Ucrânia, a chegada à Düsseldorf que o acolheu em 2001, e com a impressionante redoma de vidro que evoca um globo com neve replica um agonizante contexto.

Balmain

Foi em outubro passado que Olivier Rousteing revelou ao mundo o acidente que lhe provocou queimaduras graves. Na preparação desta coleção, o diretor criativo da Balmain seria incapaz de antecipar a guerra que aí vinha, mas ironicamente o espírito combativo, saído da sua própria cruzada, acaba por contagiar os looks que fez desfilar na cidade luz, entre armaduras, proteções e outros detalhes que compõem a tática do designer. Com o embate Ucrânia-Rússia a tingir a semana, Rousteing (que estará na calha para ser o próximo designer convidado da Jean Paul Gaultier, a avaliar pelos rumores mais recentes) não esqueceu o momento delicado no post que publicou antes do desfile. “Sabemos que há coisas mais importantes a acontecer hoje no mundo. É difícil sentirmo-nos bem quando nos focamos nas passerelles e nas roupas, enquanto escutamos as notícias mais recentes com o coração apertado. Os nossos pensamentos e orações estão com os ucranianos”.

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Hermès

O outono-inverno 22/23 desfilou pela Garde Repúblicaine em Paris dentro do habitual registo ultra feminino da Hermès. E para a diretora artística Nadège Vanhée-Cybulski o principal malabarismo é equilibrar o prato do clássico saber-fazer da maison, um trunfo seguro em tempos instáveis, com a natural ânsia de renovação e modernidade. É por isso que os fiáveis e formais casacos do mais ilustrativo country chic se entrelaçam com a exposição da pele, revelada e consagrada através de inesperados calções.

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