Na Factory Lisbon, no Hub Criativo do Beato, a passerelle estende-se por três salas ligadas entre si, que têm em comum grandes janelas com vista em direção ao Tejo e uma rica luz natural, quando a hora do dia assim o permite. A afluência de convidados lembrou os tempos pré-pandemia e até os lugares para assistir aos desfiles voltaram a ser disputados bancos corridos. Foi assim que se tomou o pulso desta sexta-feira, segundo dia de ModaLisboa. O desfile/concurso de Sangue Novo apresentou as propostas dos novos designers e marcou o início das apresentações do dia. Seguiram-se Duarte, Béhen e Lidija Kolovrat.

O breakdance de Duarte, os bordados de Béhen e os quadrados de Kolovrat

Ana Duarte é ilustradora, tem livros publicados e, nesta coleção Duarte, leva-nos novamente pelo seu universo imaginário à boleia do cão Tadao, que quer salvar o mundo dos problemas causados pelos humanos. A banda desenhada World Keeper tem nesta estação um novo capítulo. Conta-nos que “é na história e nas silhuetas que esta coleção é uma continuação da anterior.”

A primeira coleção Duarte aconteceu em 2015 e no ano seguinte já estava a apresentar as suas propostas na ModaLisboa. Para o próximo outono/inverno Ana Duarte explica que “o break foi uma das grandes inspirações da coleção”. A designer estudou a dança, a sua cultura e o seu movimento e traduziu-os nas silhuetas. Mas a breakdance foi além da inspiração e teve mesmo lugar de destaque na passerelle, com uma performance a encerrar o desfile. “Fiz uma parceria com o Cifrão, que criou a coreografia e o Cristóvão Machado é bailarino olímpico.Convidámo-los porque achámos que era um bom complemento mostrar o bailarino a dançar com a nossa roupa e fazer uma espécie de resumo da coleção toda”.

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Uma das principais preocupações de um designer de moda preocupado com a sustentabilidade é a escolha dos materiais. Depois de ganhar o prémio de sustentabilidade C.L.A.S.S. Icon 2021, distinção atribuída a criativos que apostam nesta questão, Ana Duarte diz que tem recebido “mentoring” sobre fornecedores e confessa que “em Portugal começa a haver algumas propostas, mas ainda não há uma vasta escolha. As escolhas que existem são muito mais caras ao ponto de termos de considerar se vale a pena subir tanto preço das peças. Será que o consumidor vai entender?”

Para esta coleção, explica que apostaram no estampado digital, porque se estampa só o que for preciso, e também em tecidos de um fornecedor chamado Maeba, que tem a preocupação de seguir  o rasto dos material desde a origem até à produção final. Além disto, Ana Duarte acrescenta que os forros são biodegradáveis e as lãs que aparecem nesta coleção de inverno “ainda não têm certificação sustentável, mas são de uma empresa portuguesa, a Albano Morgado, que tem todos os cuidados com a indústria, entre outras coisas trabalha diretamente com pastores para produzir a lã.”

No desfile salta o padrão inspirado no efeito de pósteres rasgados onde a cor que sobressai é o tom de verde água que já se vem tornando uma assinatura da designer. “[esta cor] entra em todas as coleções. Eu tento fugir, mas é a minha cor preferida. Vai tendo tons diferentes. Já tentei largar, mas é inevitável. Acaba por ser um elemento unificador entre as coleções.” A Duarte decidiu envolver-se na ajuda ao povo da Ucrânia com parte das vendas da sua coleção de outono/inverno 2022. Entre os dias 12 e 20 de março as compras feitas em duartebrand.com traduzir-se-ão em doar 10 euros por cada peça de roupa e 5 euros por cada acessório.

O nome da coleção da Béhen dá que pensar: “Adeus, até ao meu regresso”. Para já a designer Joana Duarte exclui uma verdadeira despedida “não é um adeus em termos de projeto, mas é sem dúvida um tempo de reflexão”. Conta que foram conversas com a avó que a lançaram numa busca interior e explica que “não acho que vá parar, mas são técnicas que precisam de técnicas e de amor e a indústria da moda é muito intensa”, e acentua o contraste entre as duas realidades.

O tema da despedida foi o ponto de partida para esta coleção. “Tem a ver com o facto de haver várias despedidas na minha família. A emigração está muito presente nas várias gerações e influenciou muito toda a história da minha família. Influenciou tudo e deixou vestígios.” Diz que é uma privilegiada porque não sabe “o que é um ‘adeus desta forma’”, mas todas as gerações para trás de si sentiram na pele a dor da despedida. Na coleção saltam à vista uma série de tipos de bordado diferentes. Segundo Joana Duarte, serão sete e vão da Madeira aos Açores (mais especificamente à ilha Terceira) passando por Viana do Castelo.

Há ainda tapeçarias e Arraiolos transformados em peças de vestuário. A combinação de texturas é complexa e algumas delas ganham ainda mais formas em peças com volumetrias ousadas ou em contraste com pelo ou transparências. Como explica a designer, há a preocupação do impacto que as peças terão quando entram na sala de desfiles. “Quando o desfile é pensado, a música e os modelos também são pensados com alguma antecedência. Aquilo que é o desfile influencia muito o processo criativo e no show estas peças mais estruturadas têm muito impacto.”

A coleção “Are Ghosting us” de Lidija Kolovrat encerrou o 2º dia de ModaLisboa. Numa coleção sobre a qual a designer diz que “a maioria das peças tem a sua própria sexualidade e podem ser usadas independentemente do género” destacaram-se os imponentes casacos de inverno, em contraste com os  vestidos fluidos, que já são uma assinatura de Kolovrat. Quanto à paleta de cores imperaram o branco e o preto, houve pinceladas de um laranja contagiante e um toque de rosa. As linhas assumiram o papel de padrão na coleção e criaram dinâmica com quadrados (grandes e pequenos) e com desenhos curvilíneos. Destaque ainda para as pinturas faciais e para os cabelos que criavam a ilusão das modelos estarem a caminhar contra o vento. Talvez em direção ao fim deste segundo dia de desfiles.

À descoberta do futuro

Recumos ao arranque da jornada e ao desfile Sangue Novo, que já vem sendo uma tradição da ModaLisboa e que aqui marca a segunda fase deste concurso. Nesta edição os participantes foram Filipe Cerejo, Ivan Hunga Garcia, Maria Clara Pontes Leça, Maria Curado e Veehana (por João Viana) e cada um apresentou uma mini-coleção de sete coordenados. Estes jovens designers são todos “repetentes” da edição passada. Esta sexta-feira mostraram as  propostas que estiveram a desenvolver desde outubro com o apoio de parcerias desenvolvidas pela ModaLisboa e orientação dos membros do júri (Miguel Flor é o Presidente, a ele juntam-se a designer Constança Entrudo e a stylist Nelly Gonçalves, assim como Massimiliano Giornetti, diretor da Polimoda, Federico Poletti, diretor da revista Manintown, e Pedro Silva, Head of Industrialization da Tintex). Estavam em jogo os prémios Polimoda, Tintex Textiles, Showpress e também o Prémio United Colors of Benetton, uma novidade, atribuído pelo público através de votação na app mobile ModaLisboa.

Depois de apresentadas todas as coleções a passerelle foi o palco da atribuição dos prémios, que garantem aos vencedores uma experiência profissional e uma bolsa. Maria Clara recebeu o Prémio United Colors of Benetton e também o Prémio Tintex Textiles. Filipe Cerejo foi o vencedor do prémio Polimoda.

“Eu varria, montava, carregava, fui crescendo e as pessoas começaram a ter respeito por mim”. Luís Pereira, o homem dos bastidores

A coleção de Maria Clara é feminina e masculina, tem o nome “I had a flashback if something that never existed” e reflete uma visão do mundo muito própria da designer, recheada com as coisas que a fazem feliz. Inspirou-se no bordado da Madeira, mas trouxe para a sua coleção apenas a estampagem inicial. A designer afirma que gosta de trabalhar com malhas e isso é notório, são várias as peças em malha trabalhadas de diferentes formas, ora estampadas, ora combinadas em diferentes texturas. A vencedora desta edição do Sangue Novo é licenciada em Design de Moda pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa desde 2018. Estudou em Londres, tem trabalhado em moda e na sua Madeira natal dedica-se ao projeto solidário “Criar com Tradição” no apoio às tradições de artesanato da região.

Filipe Cerejo desenhou uma coleção masculina a que deu o nome “Do you feel the rush yet?”. Inspirou-se na música techno e idealizou um homem que gostasse de se divertir nas discotecas de Berlim nas décadas de 1980/90. O ponto de partida foi a modelagem das peças e a sua construção. Um casaco com três golas passa a poder ser usado de diferentes formas. Os seus materiais de eleição são a ganga e o jersey e o desafio nesta coleção era juntá-los de forma harmoniosa. O designer estudou moda entre o Porto e Londres, cidade onde integrou a Middlesex University e onde se formou em 2021. Trouxe para as propostas de inverno 2022 os conhecimentos de tailoring e peças que aguçam a curiosidade do espetador.

Ivan Hunga Garcia apostou num desfile em jeito de performance artística, uma vez que as suas criações consistiam em matérias orgânicas. Esta coleção de nome,  “Último Prefixo/Última Praepositionis”, “é uma coleção decadente e de retrospetiva e sobre o comportamento do ser humano, nesse sentido tem uma composição de diferentes matérias.” Por um lado uma textura com aparência e segunda pele que o designer explicou tratar-se de “SCOBY, é o resultado da fermentação da kombucha, é um chá fermentado e uma matéria muito versátil” (criada numa colaboração entre o designer e a Aquela Kombucha) embora, explica, tenha  características de hidratação muito específicas e se altere com a temperatura do corpo. Por outro lado, as plantas a assumirem o papéis no vestuário, “as avencas dão lugar a plumas, o relvado substitui pelo”, diz o designer formado em design de moda pela ESAD (Matosinhos), em 2021.

Maria Curado vê a sua coleção como artesanal porque diz que não procura a perfeição. “Estou à procura de algo que me encha a alma, para mim uma peça não precisa ser bem feita, pode ter costura para fora, pespontos que não é suposto aparecerem, mas aparecem. Tudo o que está na coleção foi propositado e tem um porquê.” Estudou Design de Moda no Modatex Porto e trouxe a este Sangue Novo a coleção “Truth or Dare” que tem por trás toda uma reflexão sobre a complexidade da verdade. “Existem verdades absolutas, mas também existem muitas outras que não o são e nós presumimos toda a verdade como uma coisa absoluta”.E como é que isso se traduz para a roupa? “A minha ideia era distorcer os cortes dos moldes. Também trabalhei os padrões porque tenho uma ligação muito grande com o design gráfico”. O resultado foram looks com peças que pareciam puzzles.

Para criar a coleção de Veehana, João Viana embarcou numa viagem pessoal, através da terapia “lucid dreams”, que são “sonhos lúcidos que trazem memórias”. Buscou referências que desconhece e imagens da sua vida que transformou em referências para criar uma coleção. Começou por idealizar um mundo com os seus ideais e depois construiu uma série de looks à base de malhas que procuravam envolver o corpo e explorar a ideia de verticalidade, que está bem presente nas costuras e nervuras verticais das peças. Estudou design gráfico, ourivesaria e formou-se em design de moda pelo Modatex Porto, em 2021.