Os chamados documentários true crime, autênticas experiências imersivas de narrativas criminais verídicas que de tão tresloucadas parecem ficção, são um dos maiores filões para a Netflix. Constantemente no Top 10 dos programas mais vistos da plataforma, são um maná para memes e para conversas com colegas de trabalho junto à máquina de café, naquela comunhão que só é possível quando estamos todos a ver os mesmos programas.

Sendo um formato muito mais barato que as séries guionadas e com resultados tão fulgurantes, o gigante do streaming habitou-se a peneirar as melhores histórias de berbicachos judiciais, que podem ir do homicídio horrendo ao ladrão patusco que fez tudo mal porque chumbou nos testes psicotécnicos para trafulha. O trailer de “Bad Vegan” (em Portugal, “A Falsa Vegana”) era um autêntico Chimarrão, com de tudo um pouco, de um cão imortal (vou explicar mais à frente, juro) a uma fugitiva saudável apanhada por causa de uma encomenda fast food. Tudo apontava para um documentário em quatro partes promissor e explosivo. Infelizmente, não é o que acontece. “Bad Vegan” oscila a confusão com o aborrecimento, uma história com potencial que é contada lentamente — mas só porque se demora nas partes do caso com menos interesse, deixando pela rama a fritaria (termo técnico) que nos fez carregar no play.

Habitualmente, os true crime docs geram uma de duas reações do espectador maratonista: ou torcemos pela vítima ou somos fascinados pelo vilão. Aqui, apesar de uma clara protagonista, não acontece nenhuma das duas. Sarma Melngailis, que relata na primeira pessoa o que lhe aconteceu, era dona de um restaurante raw vegan (comida sem qualquer origem animal que, simultaneamente, é servida apenas crua) que constituía um fenómeno junto de celebridades. O Pure Food And Wine ficava em Manhattan e tinha sempre casa cheia, garantindo a Sarma presenças recorrentes na televisão, capas de revista, bestsellers e amigalhaços VIP. Mas tudo descamba no dia em que conhece no Twitter um tal de Shane Fox, um homem misterioso que dá a entender ser um agente especial e também um grande amigo do ator Alec Baldwin (sendo que este segundo parâmetro, nem sequer comprovado, lhe parece dar uma credibilidade exagerada junto de Sarma).

[o trailer de “Bad Vegan — A Falsa Vegana”:]

Rapidamente Melngailis e Shane casam e aí começa o descalabro. Shane afinal chama-se Anthony Strangis e consegue convencer a sua nova mulher que tem poderes mágicos que lhe poderão garantir não só fortuna, como também a imortalidade de Leon, o cão da dona do famoso restaurante. Strangis convence-a de que não é um ser humano, mas sim uma figura poderosa de outra dimensão num “fato de carne” (meat suit, expressão do próprio). Numa espécie de lavagem cerebral que amigos, familiares e funcionários têm dificuldade em explicar (e Melngailis era muito querida entre o seu staff), a até então astuta mulher de negócios transforma-se numa subordinada que dá ao novo marido não só o controlo do seu restaurante, mas também quase 2 milhões de euros. O Pure Food And Wine vai à falência com estrondo, resultando numa fuga do casal para zonas recônditas dos Estados Unidos.

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“Bad Vegan” mistura “Tinder Swindler” com Bernie Madoff com seitas unipessoais com a bizarria de “Tiger King”. Mas a mistura é confusa e convence pouco. Não é uma caixa de sortido rico com várias bolachas distintas; é uma sardinhada coberta de chocolate quente. Esta que vos escreve admite, manchando quiçá a sua já diminuta reputação profissional, que adormeceu o seu quinhão de vezes. Mas quando voltava para trás para rever, não ficava mais esclarecida.

A série documental não rende com interesse as quase quatro horas propostas pela Netflix. Como termo de comparação, o bastante superior “Tinder Swindler” apenas tem hora e meia. Não duvido que exista aqui uma boa história, mas passamos mais tempo a ouvir telefonemas repetitivos do que a compreender, afinal, o que se passou com esta mulher. A própria parece, alguns anos e penas efetivas depois, não saber explicar o sucedido – porque, aparentemente, ainda nem sequer percebeu o Certo e o Errado das suas decisões e respetivas consequências. Também nunca é percebido como é que, teoricamente, funcionavam os tais poderes mágicos e que rituais foi Melngailis obrigada a fazer. O seu raciocínio permanece confuso, sendo os seus antigos funcionários e associados aqui entrevistados o mais próximo da voz da razão.

Outro detalhe bastante duvidoso é o próprio nome do documentário. Há um aproveitamento um pouco desleal da insistência em colocar “vegan” no título, detalhe que na prática tem zero impacto na história. Melngailis é mais permeável por comer tofu à Brás? Não me parece. Para as vigarices aqui orquestradas podia ser um restaurante vegan, de sushi ou de torresmos servidos em pratos com desenhos de molho.

Talvez Sarma Melngailis tenha esperança de que este documentário a salve, lhe restitua a credibilidade que perdeu. Que lhe limpe a reputação, talvez permitindo uma nova vida do Pure Food And Wine. Porém, sai pouco disto como vítima, ficando inclusivamente a dúvida sobre o quão engana terá efetivamente sido. Será tudo um esquema? Talvez. Mas longa vida ao cão Leon, que de facto é muito patusco.