Evgeniy Maloletka e Mstyslav Chernov — são dois dos nomes que alegadamente fazem parte da lista de inimigos das tropas russas. Estes homens eram os únicos fotojornalistas ligados a um órgão de comunicação internacional em Mariupol e mostraram com regularidade a destruição e as mortes nas últimas semanas — o seu trabalho foi publicado pela agência Associated Press (AP). São ucranianos, fotojornalistas freelancer e, contam agora, tiveram de fugir da cidade portuária que está cercada há várias semanas pelo Kremlin. Esta segunda-feira, um texto escrito por Mstyslav Chernov para a AP denuncia a perseguição de que foram alvo e os motivos da fuga de uma cidade onde as comunicações não funcionam e onde já nem sequer chega comida.

Os dois fotojornalistas chegaram a Mariupol no momento em que as tropas russas invadiram a Ucrânia, a 23 de fevereiro, e foram denunciando o cenário de caos e de sofrimento naquela cidade. Além das fotografias e dos vídeos publicadas pela AP, também nas suas redes sociais foram divulgando o que estava a acontecer. No entanto, o trabalho de divulgação de informação, muitas vezes contestado pela Rússia, terminou a 15 de março — momento em que Evgeniy Maloletka e Mstyslav Chernov foram obrigados a abandonar a cidade de Mariupol.

Neste dia, relata Chernov no texto publicado pela AP, os dois jornalistas estavam dentro de um hospital e só perceberam que tinham de sair dali, ainda que fosse mais seguro estar dentro daquele edifício, quando os soldados ucranianos perguntaram “Onde estão os jornalista, pelo amor de Deus?”.

Documentaram destruição, enquanto Rússia falava em encenação

Foram levados através de um corredor humanitário para longe da cidade pelas tropas de Kiev, tendo-lhes sido dito que, caso tivessem sido encontrados pelos russos, o mais provável era serem forçados a desmentir todo o material recolhido e divulgado e a dizer que tinham manipulado tudo. “Só aí é que percebemos porque é que os ucranianos colocaram as vidas dos seus soldados em risco para nos tirar do hospital”, escreveu Chernov no primeiro texto assinado por si depois de sair de Mariupol.

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Foi Chernov que avançou a notícia de que a mulher que foi retirada do interior da maternidade de Mariupol depois dos bombardeamentos, assim como o seu filho, não tinha conseguido sobreviver. E Evgeniy Maloletka foi o autor das fotografias da destruição da maternidade e dos rostos das mulheres e crianças que estavam lá, entre os escombros.

A propósito da destruição desta maternidade, Igor Konashenkov, porta-voz do ministério da Defesa russo considerou que a força aérea daquele país “não realizou qualquer missão de destruição de alvos na região de Mariupol”. “O suposto ataque aéreo é uma encenação total com fins provatórios, a fim de alimentar o sentimento anti-russo no Ocidente”, acrescentou. No entanto, as fotografias e vídeos captados por Chernov e por Maloletka mostraram sempre o contrário.

E foram também estes dois profissionais que documentaram a destruição do teatro de Mariupol, onde estavam centenas de pessoas abrigadas. E cujas imagens foram consideradas falsas pela Rússia.

O pai que carregou o filho em desespero e a mãe que o chorou

Evgeniy Maloletka é também o autor de uma sequência de fotografias que não precisam de descrição e que mostram a dor no momento da perda de um filho. Publicadas nas redes sociais, as imagens focam primeiramente num pai com um bebé de um ano e meio ao colo, a correr no hospital de Mariupol. Depois, é possível ver a equipa médica a tentar salvar a criança, assim como a mãe a chorar junto do filho e um médico sentado no chão, com o olhar vazio.

Estas fotografias em concreto foram publicadas no início de março, mas os relatos são quase todos dramáticos. Dias antes, este jornalista escreveu, a propósito de outra história: “O que sabemos sobre a guerra? Hoje vi a enorme tragédia de uma família ucraniana que ficou ferida e perdeu o seu filho”.

Os dois jornalistas conseguiram, durante cerca de três semanas, divulgar o que estava a acontecer naquela cidade portuária que é, aliás, um ponto estratégico para Moscovo pela sua localização — está situada junto ao Mar de Azov e a meio caminho entre Donbass e a Crimeira, duas regiões já controladas pelos russos. Além dos trabalhos para a AP, os jornalistas também usaram as redes sociais — sobretudo o Instagram.

Numa publicação feita há seis dias por Evgeniy Maloletka nesta rede social lê-se o seguinte: “A guerra continua, muitas pessoas foram e serão mortas. Os tanques russos estão a bombardear prédios residenciais”. As fotografias que acompanham a publicação foram classificadas pelo Instagram como conteúdo sensível.

Militares ucranianos colocaram vida em risco por eles

Mas esta comunicação tornava-se, com o passar do tempo, cada vez mais difícil. Mstyslav Chernov, que já fez a cobertura de guerras no Iraque e no Afeganistão, explica no artigo publicado esta segunda-feira que os médicos pediam que filmassem “as famílias a levar os seus próprios mortos e feridos”. E que os militares ucranianos colocavam as suas vidas em risco para que ambos pudessem carregar as suas máquinas ou ter acesso à internet.

Voltando ao caso da maternidade, Chernov recordou esse dia para exemplificar a necessidade e importância que as suas informações tinham. E, na semana passada, à Vanity Fair, Julie Pace, editora executiva da AP, tinha dito que “eles sentiram que precisavam de voltar lá (à maternidade)”, para “descobrir o que aconteceu com as mulheres que ali estavam”. Nessa altura, o seu material estava quase sem bateria e não tinham ligação à internet: “O toque para recolher estava a poucos minutos. E um polícia ouviu-nos falar sobre como receber notícias do bombardeamento do hospital”.

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“Isso mudará a direção da guerra”, terá dito de seguida o polícia aos dois jornalistas, que os levou a um local onde conseguiram fazer o seu trabalho. Demoraram várias horas para divulgar a situação, enquanto continuavam os bombardeamentos, relata Chernov.

Tínhamos registado tantas pessoas e crianças mortas, um número interminável. Não percebia porque é que ele achava que mais mortes poderiam mudar alguma coisa. Estava errado.”

Corpos em vala comuns

Estes dois jornalistas estiveram em contacto permanente com quem sobrevive aos ataques das tropas russas. Na semana passada, Mstyslav Chernov expôs o cenário que se vive no único hospital que existe agora em Mariupol, através da publicação de um vídeo. Depois dos bombardeamentos a várias estruturas da cidade no sul da Ucrânia, este hospital “serve de centro de emergência, de maternidade e de morgue”. A cave deste edifício foi construída para armazenar alimentos, mas serve agora para colocar os corpos das vítimas da guerra.

O armazém do hospital não é, no entanto, suficiente. Os corpos começaram a ser enterrados em valas comuns e a situação foi também denunciada por Mstyslav Chernov.

“Filme-me para que a minha família saiba que estou vivo”

Enquanto fora de Mariupol a informação dada por estes dois jornalistas era contestada pelo Kremlin, com a Rússia a afirmar, por várias vezes, que as imagens eram falsas, dentro daquela cidade portuária, as pessoas acreditavam que eles podiam ter, de facto, impacto na guerra, ajudando a Ucrânia. E os dois continuavam a contar a história daquela cidade através das suas redes sociais.

“Os dias em Mariupol têm sido cada vez piores, sem eletricidade, sem gás, sem água e sem comunicações”, escreveu Evgeniy Maloletka, que já tinha feito a cobertura da revolução de Maidan, em 2014 , noutra publicação.

“Muitas pessoas vieram ter comigo e disseram: por favor, filme-me para que a minha família que está fora da cidade saiba que estou vivo”, acrescentou Chernov no texto que escreveu para a Associated Press. Além de não existirem comunicações, a informação que chegava à cidade era pouca — e a única vinha através de um sinal de rádio que transmitia apenas notícias russas, recorda. E durante vários dias, a única ligação que tinha com o exterior era através de um telefone que funcionava via satélite.

Foi assim que os dois jornalistas perceberam que a ausência de informação para o mundo facilitava o trabalho da Rússia. Primeiro, as pessoas que estão em Mariupol entraram em pânico e, depois, sem notícias sobre o que estava acontecer na cidade “as forças russas podiam fazer o que quisessem”. “Se não fosse por nós, não haveria nada”, escreveu.