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O sonho do poder cria monstros: é nesta "Orgia" de Pasolini que os (re)encontramos

Este artigo tem mais de 2 anos

No ano do centenário do poeta e cineasta italiano, o encenador Nuno M Cardoso revisita a peça "Orgia", para se focar nas questões do poder e do mundo de terror e indiferença que ele cria. Até dia 9.

Albano Jerónimo e Beatriz Batarda são o casal sado-masoquista e autodestrutivo de "Orgia"
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Albano Jerónimo e Beatriz Batarda são o casal sado-masoquista e autodestrutivo de "Orgia"

Raquel Balsa

Albano Jerónimo e Beatriz Batarda são o casal sado-masoquista e autodestrutivo de "Orgia"

Raquel Balsa

Em Pasolini entra-se sempre pela porta da poesia; seja nos romances, no teatro, no cinema. Seja quando escreve usando o a gíria dos adolescentes pobres de Roma, seja quando descreve o inferno que se vive dentro das casas burguesas onde as raparigas são violadas pelos pais, as mulheres são habitualmente espancadas, as mães matam os filhos, os homens vestem-se de mulher e enforcam-se, como nesta Orgia. A peça de um dos mais portentosos e controversos artistas italianos do século XX, o escritor, cineasta e polemista Pier Paolo Pasolini, estreada em Turim, em 1968 e parte de um movimento teatral que ele próprio cunhou como “Teatro da Palavra”. Depois de se passar por  Guimarães e Viseu, a obra sobe agora ao palco da Culturgest, onde pode ser vista a partir desta quinta-feira, 7 de abril, e até sábado até dia 9.

Mais do que uma peça de teatro, Orgia pode ser definido como um poema a várias vozes, ou um oratório laico que exprime, entre lirismo e declaração, a crise da sociedade contemporânea, representada através de uma obsessão individual.”

[Nuno M Cardoso]

Esta é, portanto, uma peça na qual se deve entrar com os ouvidos mais abertos que os olhos, até porque uma escuridão azul, simultaneamente primordial e apocalíptica, reinará na sala, onde as palavras são as protagonistas. Tudo parece acontecer em câmara lenta, numa irrealidade onírica. Pasolini dizia que o novo fascismo, materializado nos comportamentos normalizados pela televisão e pelo consumo, nos fazia viver numa bolha de egoísmo e indiferença onde já não podíamos distinguir o Bem do Mal. E se há lugar onde se podem ver as relações de poder, a normalização das mentes e dos corpos forçada pelo fascismo, é dentro de uma casa de família burguesa, aquela que detém o poder. Nomeadamente o poder de estabelecer a fronteira entre o que é e não é normal, entre os que são aceites no centro e os que são votados às margens, aquela “que se senta no sofá à espera de ver o próximo escândalo”, como escreveu Pasolini vislumbrando, profeticamente, as salas das casas do século XXI, onde cada um está colado a um ecrã e onde a cultura é um bem de consumo que visa a obediência a uma linguagem, a valores e códigos como outro objeto qualquer.

Beatriz Batarda é "ela" uma mulher sem nome que se submete a todo os abusos dos homens

Raquel Balsa

Embora esta história possa ser vista como uma reflexão sobre questões da sexualidade, da homossexualidade, do sado-masoquismo, da violência e do sofrimento auto-inflingido por todo os que não se sentem “normais”, o encenador Nuno M Cardoso desviou o olhar para outro ângulo da peça: as questões do poder, um tema em torno do qual Pasolini sempre deu passos em volta, até pela sua própria biografia: homossexual, intelectual de esquerda que criticava incessantemente essa mesma esquerda, ateu que idolatrava a figura de Cristo, pensador que recusou todas as formas que o sistema lhe deu de se normalizar, de se integrar, até à sua morte, ao seu assassinato, com 53 anos. Ele foi a mão que, durante décadas, se levantou sozinha para acusar a sociedade italiana e a sua moral católica e fascista. Em 1949, quando foi expulso do PCI — Partido Comunista Italiano devido à sua opção sexual, escreveu:

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“A minha vida futura não será a de professor universitário: agora em mim está a marca de Rimbaud, ou de Campana e também de Wilde. Quer eu queira quer não, quer os outros aceitem ou não.”

Pasolini: um homem livre

Batarda e Jerónimo: quem é o carrasco de quem?

Num domingo de Páscoa, um homem e uma mulher sem nome, numa casa que é agora um circulo de lama e água, uma instalação da autoria de Ivana Sehic. Estamos algures entre a morte e o princípio do mundo. Entre a idade do ouro e a idade do ferro. E têm nas mãos a mais adâmica das matérias: o barro. Porém, logo percebemos que já tudo foi criado e destruído e um homem enforcado fala-nos do alto da sua morte. O homem é Albano Jerónimo, que aqui encarna não só o poder patriarcal fascista, mas também o macho psicopata, que assedia, viola, humilha e ainda o homem que vive condenado a uma sexualidade que não é sua, sofrendo por isso como uma criança frágil, perdida.

A mulher, que encontramos àquem e além morte, é Beatriz Batarda. Ninguém consegue pronunciar a língua portuguesa com tamanha perfeição. Cada palavra sua ecoa, sílaba a sílaba, sem engolir consoantes, nem fechar vogais. O seu corpo e a sua voz são um todo. Entre as palavras e os corpos dos atores-personagens há uma brecha: eles querem que vejamos a ficção e a construção da ficção. A nossa presença é requerida a todo o instante porque Pasolini não acreditava em nenhuma obra que fizesse do público uma entidade inferior, nem um camarada, mas alguém de quem se exige tudo, pois só essa exigência demonstra respeito. A todo o instante, enquanto conta a sua história, aquele casal questiona a realidade que as palavras constroem e percebe que tudo é uma farsa, da qual só conseguem fugir pelo sofrimento da carne. Depois de expor as marcas da violência no corpo, ela dirá: “A nossa realidade não é aquela que exprimimos com as nossas próprias palavras, mas a que exprimimos usando o nosso corpo como figuras: eu como vítima e tu como carrasco”.

Basta abrir os jornais, os romances, para perceber que a história que contamos de nós mesmos é sempre a mesma, há milhares de anos, como se o mundo fosse assim tão simples.

"Orgia" é uma produção do Teatro Nacional 21 e estará em cena na Culturgest, em Lisboa, até dia 9

Raquel Balsa

Ela é a vítima perfeita: tão manipuladora e (auto)destrutiva como o carrasco, tão frágil e perdida como ele. Ambos a saberem-se culpados por terem aceitado e corroborado com esse mundo feito a medida de outros.

“Amo ferozmente a vida (…) amo os solitários, a erva, a juventude. Devoro a minha existência com um apetite insaciável”, disse Pasolini numa entrevista. Este seu amor pela vida e pela juventude parece dar ao homem enforcado, a possibilidade de redenção e recomeço depois de matar a mulher e os filhos. A atriz Marina Leonardo é assim uma espécie de Eva ou cordeiro sacrificial reencarnado (como Cristo) numa rapariga nua no meio da lama. Mas para aquele “homem médio”, ao qual Pasolini chamava “monstro”, ela seria apenas mais um objeto de consumo sexual. Depois de perder a jovem rapariga, nada mais lhe resta senão o suicídio e tudo recomeça. O sol desponta ainda que não haja nada de novo sob ele.

Pasolini desejava que as sua obras fossem sempre “experiência linguística e filosófica” e isso fez com que a maioria fosse considerada polémica e tenha causado vários escândalos. Vivendo à margem de uma sociedade que vigia os que a recusam, como implacável atenção foi também ele implacável: para a igreja católica, para os artistas, para a Direita e a Esquerda, para os burgueses e para os proletários. Com um olhar de falcão ele percebia as imposturas, as mentiras, os simulacros de uma cultura, desde os seus acontecimentos importantes, como o Maio de 68 que considerou “uma falsa revolução para filhos de papás” até coisas prosaicas como os homens usarem cabelos compridos, como se fosse um ato de rebeldia e recusa mas que na verdade era apenas porque ser moda.

Assim, esta é uma encenação corajosa, que procurou e fez um caminho próprio, diferenciado e profundamente inquietante.

Marina Leonardo é a terceira voz desta peça. A jovem rapariga sacrificial, a nova presa do assassino

Raquel Balsa

Quatro perguntas a Nuno M Cardoso

Em Orgia, onde muitos viram ou leram sobretudo a questão da homossexualidade, o Nuno, opta por fazer dela uma peça sobre o poder, os diversos tipos de poder e a forma como ele atua sobre os corpos e as consciências. Porque é que escolheu precisamente esta peça, das várias de Pasolini, e porque é que decidiu representá-la deste ângulo?
Além da beleza poética, da carga política e da densidade filosófica, que por si são já razões para a sua leitura, os conceitos de Eros e Tanatos presentes nesta tragédia contemporânea sobre a diversidade, a identidade pessoal, a luta pela liberdade e a procura de felicidade numa sociedade opressora, controladora e reguladora foram motores para a sua encenação.

Cito Pasolini numa conversa com Manlio Cancognina época da escrita e apresentação de Orgia:

“O nosso século pode ser, culturalmente, bem definido. Posso resumir-te a história com uma parábola. Existia no mundo uma sociedade muito poderosa, decidida a conservar o poder por todos os meios. Mas o que existe de mais culpável do que de ter o poder? E quando alguém se sente em culpa o que é que deseja? Deseja punir-se. A burguesia, oprimida pelo sentimento de culpa, queria suicidar-se. E fê-lo. Mas indiretamente, atingindo-se na cultura, ou seja, na razão. A cultura burguesa, de facto, estava sob a insígnia da razão; a razão era o grande mito da cultura oitocentista. Através da morte da razão, a burguesia suicidou-se expiando a sua culpa, a culpa de de ter o poder.”

O poder numa sociedade normalizadora tenta anular ou suprimir as diferenças e a diversidade. Este poema trágico de Pier Paolo Pasolini é, num dos sentidos políticos que a obra encerra em si, sobre a tragédia da burguesia e da sua identidade de classe social totalizadora.

O cenário adâmico de água e lama remete-nos para a ideia de que o início e o fim são parte de um mesmo todo. Remete-nos para os textos bíblicos, mas também para os mitos, que eram tão caros a Pasolini. Que ideias queria explorar com este cenário tão minimalista e omnipresente?
Orgia é um teatro de palavras conjugadas pela língua da carne, não é uma história pornográfica ou erotizada. É a ascese do Eros, que impele a alma, não só no desejo, mas também no ânimo e na razão, através do corpo. As personagens são ideias a serem ouvidas, e as suas ações exprimem-se num ritual de continuidade em repetição e diferença. Espera-se que o espectador oiça mais que veja. E a linguagem do corpo imprime-se nesse altar sacrificial que incorpora e memoriza, na sua superfície e na sua profundidade, esses gestos do pensamento. A argila é matéria primordial, quer a nível histórico, quer a nível mitológico ou religioso. Aqui inscreve-se como uma tentativa de retorno ao passado, a um Paraíso Perdido, mas onde é impossível de regressar. E essa travessia pela aprendizagem através do sofrimento marca e macera os corpos dos intérpretes, que por sua vez imprimem nesse espaço circular os seus corpos, gestos e ações como percurso de conhecimento, memória e consciência.

Pensou esta peça segundo o manifesto de Pasolini sobre o “Teatro da Palavra”? Porque a lentidão dos gestos, mesmo os mais bruscos, e dos diálogos parece querer dar à palavra o papel de protagonista desta peça. Ainda assim, como dizem as personagens, ela já não é suficiente, já não comunica a realidade dos corpos nem serve para sermos entendidos.A morte da palavra é a nossa morte?
O império da imagem e do consumo em que vivemos na sociedade ocidental tem destruído a profundidade do pensamento. A palavra é exigência e instrumento do poder e fundamento da ação. Aqui Pasolini propõe esta tragédia da linguagem que seja atravessada por uma aprendizagem passando pela língua da carne, a linguagem do corpo. E que o diálogo não seja no sentido da conversa, mas de luta, de conflito. O antagonismo é necessário à democracia e a palavra, que tem por trás de si as ideias e os conceitos, essencial à razão e ao pensamento.

Relembro Herberto Helder em Húmus a glosar Raul Brandão: “É preciso criar palavras, sons, palavras vivas, obscuras, terríveis.”

Acredita que o teatro pode fazer uma barragem contra as novas formas de fascismo, de barbárie ou pior, de indiferença?
Não sei se a indiferença será pior que a barbárie ou o fascismo. O pensamento é definitivamente construção contra a desumanidade e a Cultura contra a barbárie, mas que podem ser também violentos.

O teatro, como qualquer forma de arte, está em constante transformação, alterando-se com o mundo e moldando-o. Como manifestação política é ainda uma alternativa aos meios de comunicação imediatos. Cada vez mais, a necessidade e o desejo — neste mundo em crescente atomização e nesta realidade-simulacro veiculada através de ecrãs — de experiências reais e partilhadas. O Teatro estabelece relação no aqui e no agora, dando ainda espaço para o questionar, o experienciar, o manifestar e o participar. Estabelecer relações cada vez mais próximas com as comunidades com sentido crítico e transformador. Um a um e um de cada vez. Com a possibilidade de errar. E no risco e no erro a potência de criar novas intervenções no mundo.

Neste mundo que vai progredindo de forma cada vez mais rápida, a Cultura é também cada vez mais relevante e necessária para a melhoria da democracia e da qualidade de vida dos cidadãos.

Orgia” está em cena na Culturgest, Lisboa, nos dias 7 e 8 de abril, pelas 21 horas e no dia 9 aàs 19 horas. Esta obra está publicada na coleção de “Livrinhos de Teatro” dos Artistas Unidos em conjunto com “Pocilga”, apenas editada e estreada postumamente. Já a editora independente Sr Teste acaba de fazer sair “A Poesia é uma Mercadoria Inconsumível”, onde reúne poemas e recensões críticas da autoria de Pasolini.

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