“Dance dance otherwise we are lost”, foi a mensagem-repto da bailarina e coreografa alemã Pina Bausch.  Dançar como a única forma de sobrevivência física e mental é, de facto, para muitas crianças e adolescentes migrantes, dos bairros pobres, das periferias das grandes cidades ocidentais, das favelas, a única forma de sobrevivência a um dia a dia de pobreza, violência, portas fechadas, vários tipos de muros de classe, de raça, de género.

Marlyn Ortiz é o rosto, o corpo, a voz deste exército de pessoas invisíveis que emergiram do fundo de uma enorme resiliência e se tornaram pilares fundamentais da indústria da música pop, da MTV e da sua tentacularização planetária na cultura do final do século XX e XXI. “5,6,7,8 and one” que se estreia esta quarta-feira no palco da Culturgest, em Lisboa é uma homenagem do encenador Martim Pedroso a esta bailarina de “backup” ou de suporte, acrobata, performer, que teve espetáculos a solo na Broadway, dançou em espetáculos de Madonna, Usher, Cher, Britney Spears, Jennifer Lopez, Mariah Carey, Katy Perry, The Black Eyed Peas, Taylor Swift. Hoje, aos 47 anos, é treinadora de Madonna (acompanhou a cantora no tempo em que esta viveu em Lisboa e até deu aulas na escola Jazzy Dance) e, em simultâneo, criou para si própria um novo desafio como bailarina: a sua própria companhia, a Bon Bon Burlesque onde explora o universo da dança de cabaret. Sobre ela Madonna declarou:”There is a God and his name might be Marilyn.”

A bailarina backup americana de origem porto-riquenha, Marlyn Ortiz, 47 anos, atualmente é treinadora de Madonna e este espetáculo toma a sua vida para dar ver todos os bailarinos invisíveis que alavancam a industria da música pop

O espetáculo “5,6,7,8 and one”, feito entre Lisboa e os Estados Unidos, conta-nos a história de Marlyn Ortiz, curiosa fusão entre nome de estrela e de emigrante, desde os tempos em que ela e um vizinho dançavam nos quintais e baldios do Bronx, a recriar as coreografias que viam na MTV. Para ela, como para tantos grandes bailarinos, não existem coisas como escolas de ballet aos 6 anos, tutus cor-de-rosa, é que muitas portas de escolas se fecham “porque não começaram demasiado cedo”, uma frase que afinal, como demonstra o percurso de Marilyn, não passa de uma cerca sanitária a separar quem tem e não tem dinheiro. Esta peça híbrida, feita entre os Estados Unidos e Lisboa, junta um filme de feição documental, dança, literatura, arquivismo. É, como explicou Martim Pedroso, ao Observador, “uma fusão entre o corpo e a dança de Marilyn e as palavras que foi buscar a autores de várias nacionalidades” e tornou suas, para que este seu novo trabalho, “não se afastasse totalmente do teatro mas que viajasse entre essas duas formas de arte”.

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Os braços invisíveis dos que sustentam os mitos

Se toda a indústria da música pop, dos grandes concertos, da criação de novos mitos que se movem pelo universo e lhe definem os contornos, lhes dão novas direções e recrutam infinitos exércitos de adoradores, peregrinos dispostos a todos os sacrifícios para beijar os pés de Madonna como outros há dois mil anos se deslocam para beijar os pés de Cristo, a verdade é que os espetáculos cantados e dançados pela estrela têm atrás dezenas de bailarinos virtuosos que são, na verdade quem permite a construção de um espetáculo como um acontecimento gigante. Nos casos em que os cantores não dançam a sua presença é ainda mais importante.

“5,6,7,7 and one” é uma criação que filma o dia a dia da bailarina nos EUA e a funde com a dança de dois bailarinos e m palco e as palavras do encenador Martim Pedroso, que aqui também surge como ator. (Fotografia, Joshua Brandão)

“Porém, é como se eles não existissem”, afirma Martim Pedroso, “as suas condições de trabalho são precárias, cada vez mais precárias à medida que a tecnologia vai dispensando a presença real dos seus corpos nos espetáculos, o que eles ganham, comparado ao que ganha uma estrela pop é absurdamente inferior, tanto mais que quase todos eles dançam mais e melhor que os cantores, mas eles não param. Eles nunca param porque aquele ritmo é mais importante que tudo: “5,6,7,8 and one”, ou seja, a contagem dos tempos dentro de uma coreografia típica desta linguagem de movimento. É preciso que se note que, muitos bailarinos/as deixaram promissoras carreiras em escolas e companhias de dança para serem dançarinos backup, porque este é um universo absolutamente único”.

No ecrã, o corpo de Marlyn movimenta-se, os músculos das suas pernas e braços exsudam intensidade e distensão, o treino diário de um bailarino profissional é idêntico ao de um atleta de alta competição. Sabemos que cada movimento perfeito tem subjacente horas de esforço, harmonização, coordenação, repetição… 5,6,7,8, and repeat. Porém, nem sempre numa tournée lhes são dados bons quartos para dormirem, por vezes têm que partilhar quartos com colegas, conta a bailarina que fez a primeira tournée aos 19 anos:

“Não conquistei este lugar sozinha. Chegar aqui e agora é o resultado do que eu sou e do que consegui alcançar, assim como o resultado de todas as pessoas que acreditaram em mim e me protegeram. É também o resultado de todas as pessoas que não me deram nada e me rejeitaram. Todos elas me empoderaram. Fizeram com que a minha força interna, a minha confiança e a minha expressão crescessem. O meu poder é o resultado do meu amor incondicional pela dança, da minha técnica, disciplina, perseverança, força, das minhas lutas, da minha sexualidade, da minha raiva, dos meus medos e fragilidades. O meu movimento, ele próprio, é o resultado da minha voz interna que foi edificada por todos estes átomos”, afirma a bailarina, no documentário.

Nos anos 80 e 90 do século XX era mais fácil arranjar trabalho. Muitas vezes bastava fazer-se notado numa discoteca da moda. “Eram os tempos do clubbing e do voguing. Strike a pose!”, lembra Martim, que reconhece que a vida dos bailarinos de backup sempre teve no seu lado mais glorioso “a liberdade”. O ambiente de mistura racial, étnica, sexual, social “criou um universo onde parecia possível que todos os artistas pudessem ter uma voz, um lugar, uma dignidade, uma família”, explica o criador, que quis voltar propositadamente a esse período para lembrar que outro mundo é possível. “Mesmo que esse mundo seja o inferno, é preferível às cabeças quadradas, achatadas, regulamentadas dos dias de hoje, onde os artistas têm medo de falar ou de dizer algo que não seja conveniente ouvir a quem tem poder”.

“É preciso a liberdade do pão e a do desconhecido”, diz a certa altura o encenador, em voz off, enquanto sobre as imagens gravadas de Marilyn se projetam os corpos de dois bailarinos que corporizam esta narrativa, Marianna Diroma e Sérgio Noé Quintela, que Martim não esconde ter uma forte carga política: “quando falo dos bailarinos invisíveis, estou a falar de todos os homens e mulheres invisíveis que suportam, com as suas forças a nossa sociedade, o nosso estilo de vida. Ninguém é inútil, ninguém deve ser remetido à indiferença, porque a força de todos é fundamental, como vimos agora durante a pandemia. Vivemos num tempo profundamente ameaçado pela facilidade. As facilidades que este mundo neo-liberal nos incute e que nós fazemos de conta que isto é o real”.

Marianna Diroma, de itália e Sérgio Noé Quintela, de Portugal são os bailarinos que corporizam e expandem a narrativa de Marilyn e Martim foram descobertos em castings.

O espectáculo “5, 6, 7, 8 and One”, de Martim Pedroso & Marlyn Ortiz: pop, voguing e burlesco estreia-se hoje no auditório da Culturgest, em Lisboa, onde fica até 21 de maio. Até sexta-feira, a peça tem lugar às 21 horas e no sábado às 19 horas.