A morte facilita a atividade de talhar carreiras e buscar um artista pelos seus momentos de consagração. No caso de Vangelis (que morreu a 17 de maio, aos 79 anos), existem vários e embora ele possa ser recordado por diversos motivos, há alguns incontornáveis pela sua importância na cultura popular. Ali no início dos anos 1980, Vangelis consegue um sucesso difícil de medir, graças a uma sequência imbatível. Se quase uma década antes havia renunciado a uma ideia de mainstream de carreira no rock – com os Aphrodite’s Child –, a presença da sua música na série documental “Cosmos” (1980), as bandas-sonoras de “Momentos de Glória” (1981), que lhe valeu um Óscar, e de “Blade Runner” (1982) colocou-o num patamar de popularidade inevitável. A partir daí, o nome de Vangelis só ficou maior.

Contudo, manteve-se fiel às suas ideias. Discreto (raramente dava entrevistas), manteve um apetite voraz pela experimentação na música eletrónica, fosse a nível de composição ou de som. A ligação da música com a imagem facilitou a escalada de popularidade e uma carreira em bandas-sonoras que marcarão para sempre o imaginário popular de quem as ouviu (e de quem ainda as vai descobrindo). Mas mesmo aí, quando era mais comercial, mais redondo, Vangelis experimentava e deixava a sua música ser povoada por ideias que circulavam ao longo da carreira . Havia qualquer coisa de livre nisso.

A música de Vangelis é indissociável de uma geração de músicos gregos que começa a criar durante a ditadura militar (1967-1974) e que desabrocha nos anos seguintes com a chegada da democracia. Embora tenha saído da Grécia aos 25 anos, em 1968 (tentou primeiro Londres, foi-lhe negada entrada, e instalou-se em Paris durante uns anos), a evolução da sua música tem um paralelo com muitos dos seus pares e o alavancar criativo de diversos artistas nas mais diversas artes (com ótimos vultos na música e no cinema, sobretudo). Se ouvirmos hoje o que George Theodorakis, Akis ou Iasos andavam a fazer nos 1970/1980s, percebe-se que Vangelis não estava sozinho na procura de enredos fortes na criação de música com sintetizadores, que são hoje referência em vários géneros e subgéneros da eletrónica, seja experimental, cósmica, exótica, library ou com um pendão mais para a dança via o baleárico.

[improviso de Vangelis na televisão espanhola, em 1982:]

A porta de entrada pelo rock, com os Aphrodite’s Child, com Demis Roussos, Loukas Sideras e Anargyros Koulouris, e um ambicioso álbum conceptual (666, de 1972) criaram as bases para uma mente aberta e dedicada a uma visão sem fronteiras das linguagens que se poderiam criar com sintetizadores. 666, uma daquelas referências do rock progressivo, guarda a ambição de quem queria e conseguia criar histórias com os seus sons. Em Earth, segundo álbum a solo, de 1973, há um estranho confronto entre passado e presente, onde se manipula o velho e o novo com um jeito confortável e admirável.

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Em 1974 muda-se para Londres e no ano seguinte monta o seu estúdio – Nemo – na casa em Marble Arch. Aqui as coisas descolam para outro nível, o estúdio torna-se num espaço livre de experimentação, onde Vangelis mais do que procurar o futuro, assimila diferentes caminhos da música eletrónica e consegue consolidá-los numa série de álbuns maravilhosos. E, com isso, desenvolve uma linguagem que sabe comunicar o novo e sedimentá-lo. Logo em 1975 há Heaven And Hell, onde tem uma primeira colaboração com Jon Anderson (dos Yes), músico com o qual viria a encetar um projeto mais ativo ao longo dos 1980s; em 1977, Spiral transpira o lado mecânico e maquinal que vinha de muita música alemã (rock e eletrónica), sem esquecer os primeiros passos da música de dança como hoje a conhecemos.

Morreu o compositor grego Vangelis

Beaubourg (1978) é o mais experimental desta fase e talvez um daqueles que deixa menos lastro, embora seja carismático pelo risco de soar mais a uma biblioteca de sons do que à vontade de ter seguido uma carreira pelo lado mais cósmico que a sua música estava a tomar. See You Later (1980) revela-se mais aberto, alegre e cheio de vontade de ser pop. Segue-se o período das bandas-sonoras anteriormente referenciadas. Se, por um lado, há “Charriots Of Fire” que lhe vale o Óscar, a banda-sonora de “Blade Runner” virou outro tipo de clássico com o tempo. Hoje, não é só exemplo de como o som é fundamental na construção do imaginário de um filme de ficção científica, também criou na cultura mainstream a ideia concreta de “sonoridade cósmica”. E, com isso, o futuro pode ser outra coisa qualquer.

Embora a partir daqui a carreira de Vangelis tenha um decréscimo de produção em termos de imaginário de álbuns de estúdio, na década de oitenta ainda tem dois álbuns a solo a que valem a pena regressar: Soil Festivities (1984) e, sobretudo, Invisible Connections (1985), onde abre, mais uma vez, território a linguagens mais esparsas, menos cheias. É ainda a década de Jon and Vangelis, a colaboração com Jon Anderson, e dos maravilhosos “The Friends Of Mr. Cairo” (1981) e “Private Collection” (1983). As décadas seguintes são mais importantes a nível de estatuto e menos relevantes em termos de fulgor criativo. Não por necessariamente ter cedido ao comercial – longe disso – mas porque ao fim de tantos anos, encontrou o som que procurava. Normal. Mas o Vangelis mais importante – e determinante – para a música eletrónica era aquele que estava constantemente à procura.