A premissa tem graça e agarra o leitor. Em A pediatra, Andréa del Fuego pega em Cecília, uma pediatra sem grande afecto por crianças. Rompe com o clichê e toda ela é pragmatismo e eficácia, não tendo paciência para os excessos de zelo dos pais que a procuram.

A pediatra é fria, mas o consultório segue firme. Em casa, vai mantendo um casamento com um homem em estado depressivo com cinismo, espetando a facada quando lhe convém. O casamento então colapsa, e o de Celso, com quem uma relação duplamente extraconjugal, segue firme, após o nascimento do filho, que Cecília acompanhou como neonatologista. Será isto a espoletar o eixo dramático da narrativa, já que a criança, ao longo do tempo, começa a despertar sentimentos quase maternais na amante do pai. Em simultâneo, na clínica, um novo obstetra, mais atento a medicinas alternativas e adepto de outra abordagem, muitas vezes independente da ciência, vai começando a roubar pacientes a Cecília, o que irá criar o segundo eixo constitutivo do romance.

Cecília é a personagem com mais interesse no romance, já que é através dela que o leitor tem acesso a um ácido sentido de humor que Andréa del Fuego construiu bem. Na narrativa, soa sempre a verdade sem filtros, marcada por fúria. É isto que vai marcando o tom do romance, principalmente se tivermos em conta que a fúria é uma forma de dizer. No caso de Cecília, também parece uma forma de viver. Na sequência do término da relação com Celso, a fúria aparece como propulsor da acção, e o leitor ata-se ao modo imediato como surge, feito furacão a romper a razoabilidade:

“Minha vontade era seguir até Florianópolis, bater na porta do casal feliz, enfiar a criança num saco do lixo, a advogada num contêiner a caminho da Oceania e exigir que Celso voltasse à normalidade.” (p. 19)


Título: A pediatra
Autora: Andréa del Fuego
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 208

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A fúria de Cecília reduz tudo ao que é essencial, e é esse o traço maior do seu pragmatismo. Com ela, ridicularizam-se os excessos maternais, pondo-se a razão acima da emoção:

“Não atendi aos chamados da mãe no celular, para acalmar mãe com filho em UTI só o coma induzido, no fim ninguém morreu.” (p. 20)

Cecília pode parecer detestável, mas a fúria funciona como encantamento para o leitor, que vê o mundo pela sua cabeça, sente-o com a mesma raiva, revira os olhos ao sentir-lhe a impaciência. Ao longo da leitura, também o leitor começa a ver a medicina como tarefa mecânica: basta que resulte para ficar bem feita, basta seguir o protocolo, basta cumprir a obrigação. Contra o pó de arroz, vem a eficácia da ciência, e quem pode menorizar o que dá certo? Nisto, há situações em que a batalha entre emoção e razão ganham espaço maior, já que Cecília contrapõe os colegas empáticos que praticam “medicina de barbearia” aos médicos “pragmáticos e de pouco riso” que salvam vidas apenas imitando o que aprenderam. O peso que se dá à empatia ou ao sentimentalismo morre quando se encara o resultado das práticas:

“Detesto crianças e não sou eu quem as trata, mas a medicina que estudei. Posso não me enternecer com um bebê, mas tratá-lo com mais eficiência que um Jaime ninando o neonato numa rede de crochê dentro da incubadora e evitando esteroides para não contradizer a natureza.” (p. 52)

Mas o apreço pelo calor humano conquista espaço e o novo obstetra do hospital ganha o seu. Cecília começa a ser menos indicado para os partos, preterida por alguém que toma decisões que não são sustentadas pela ciência. E, ao mesmo tempo que o novo médico é visto como terno ou bondoso ou paciente, a estratégia narrativa ditou a lealdade do leitor. Cecília cativa por ser vilã e, ao ser narradora, faz-se heroína. Pouco importa que se mostre antipática. Fá-lo tão sem complacências que obriga à empatia. E, se a ideia era criar uma personagem detestável, também se pôs o ónus no sentimentalismo detestável, já que parece que é aí que reside o cinismo social.

Com um estilo de escrita rápido e furioso, Andréa del Fuego pôde criar o vício na leitura, malgrado as repetições, já que também a crueldade vicia e que uma cabeça dada sem filtros é o privilégio de quem a recebe. Para além disso, Cecília dá a hipótese de ver o que existe sem maquilhagem sentimental.

O maior problema do livro estará no seu desenlace, já que, depois de ter criado uma personagem forte, a autora decidiu introduzir um conflito que, não sendo incompatível, desvia a atenção. A pediatra que odeia crianças desenvolve instintos maternais pelo filho do amante, com quem previamente gozara por estar metido numa “alegria miserável” a viver uma “vida débil” (p. 28), e isto, para além de lhe quebrar a coesão, corta-lhe a dimensão psicológica. A resolução desse conflito também decepciona, já que parece terminar no ar, mas de forma rocambolesca. Ao mesmo tempo, o leitor sente o desequilíbrio temporal que advém de ter passado um tempo razoável a ver a personagem a desenvolver-se e de ter passado depois por um conflito demasiado rápido. O  conflito acaba ainda por criar problemas em termos de estrutura da narrativa, já que quebra com a coesão da personagem.

A pediatra acaba por surpreender pela fúria permanente e por um sentido de humor que apanha o leitor de repente, tirando-lhe o tapete. O humor negro é sempre uma boa estratégia, a acidez dá sempre impacto. Ao mesmo tempo, o tom coloquial, que se mantém invariavelmente ao longo de toda a narrativa, também dá mais espaço à intimidade com o leitor, garantindo a durabilidade da relação dialógica.

A autora não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico