Um vídeo gravado e publicado no domingo nas redes sociais propagou-se como pólvora e tornou-se, nos últimos dias, epicentro do debate público em Espanha, unindo partidos políticos desavindos e colocando o país a discutir machismo, desigualdade de género e se “tradições” aceitáveis para quem as pratica, mas ofensivas para quem assiste de fora, são legítimas.
No vídeo, uma série de rapazes que vivem numa residência universitária masculina e católica de Madrid, a Elias Ahuja, participa em insultos dirigidos às habitantes de uma residência universitária feminina — Santa Mónica —, que fica em frente ao edifício. “Putas, saiam das vossas tocas como coelhas”, ouve-se um rapaz gritar, acrescentando: “São umas putas ninfomaníacas. Prometo-vos que vão foder todas na capea [prática tauromáquicas com populares]”.
Quando o jovem termina o seu grito à janela, com a expressão “Vamos Ahuja!”, uma série de outros rapazes que vivem na residência universitária assoma à janela, ligando as luzes e gritando como animais. Esta performance será conhecida por moradores de uma e outra residência como la Granja.
"Putas, salid de vuestras madrigueras. Sois todas unas ninfómanas. Os prometo que vais a follar todas en la capea" Esto canta el Colegio Mayor masculino Elías Ahuja situado en frente de una residencia femenina. Después se preguntarán por qué sentimos miedo por la calle. pic.twitter.com/sI2dqczOfI
— Rita Maestre ???? (@Rita_Maestre) October 6, 2022
A violência contida nas palavras de ordem gritadas pelo rapaz e na reação entusiástica e de apoio dos seus colegas chocou Espanha. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, por exemplo, reagiu com indignação, escrevendo nas redes sociais: “Não podemos tolerar estes comportamentos que geram ódio e atentam contra as mulheres. É especialmente doloroso ver que os protagonistas são pessoas jovens. Nem um passo atrás. As políticas de igualdade são necessárias. Basta de machismo!”. E prosseguiu, pedindo uma “resposta ampla, unida e de rejeição comum”, destacando ser “importante que todos os partidos políticos digam não a estes comportamentos machistas”.
O apelo de Sánchez teve resposta condizente dos partidos políticos, num amplo espectro partidário, da formação política de esquerda radical Unidas Podemos ao Partido Popular (de centro-direita conservador), que condenaram em uníssono esta ‘prática’.
Reação alinhada com o repúdio público do vídeo teve também o diretor da residência universitária masculina, que deu início ao processo de expulsão do aluno que entoou os gritos e que abriu ainda uma investigação para apurar que outros estudantes participaram nos urros. Citado pela imprensa espanhola, Manuel García Artiga acrescentou: “Condenamos absolutamente, radicalmente e totalmente estas expressões que vão totalmente contra os valores da nossa residência. São inaceitáveis e inexplicáveis”.
Também as autoridades judiciais de Madrid abriram já uma investigação para averiguar se os incidentes captados em vídeo configuram “crime de ódio”, avança o El País.
Alunas não se sentem ofendidas: “É uma tradição, eles são nossos amigos”
Apesar da reação de repúdio público generalizado, as raparigas a quem os gritos e insultos foram dirigidos não estarão particularmente ofendidas. O jornal espanhol El Mundo falou, por exemplo, com uma rapariga que viveu na residência entre 2008 e 2011, Paloma, e que revelou que estes gritos e insultos já na altura eram habitualmente trocados de parte a parte, quase como se fosse uma ‘tradição’ das residências. “Era habitual ouvir ‘Mónicas, putas’ todas as noites. Na verdade, a mim nunca me incomodou. Nunca senti que fosse especificamente para mim”, apontou.
Outra rapariga que vive atualmente no colégio feminino de Santa Mónica, e que preferiu não se identificar, confirmou ao El Mundo que o que aconteceu não foi caso único, sendo antes “habitual”. E, em nota partilhada nas redes sociais, as moradoras da residência feminina posicionaram-se, descrevendo os gritos como “prática habitual entre residências” e solidarizando-se com os rapazes: “Gostaríamos de expressar o nosso apoio face às declarações que se estão a fazer. Um vídeo viral sem contexto facilmente é mal interpretado.”
Opinión de las colegialas del colegio mayor Santa Monica frente a la polémica con el colegio mayor Elias Ahuja #ahuja #colegiomayor #eliasahuja pic.twitter.com/2DxxsTpZUr
— Julia (@juliamoronb) October 6, 2022
Em declarações ao El País, uma outra aluna que vive na residência, e que também preferiu não se identificar, afirmou: “Se me chamam puta ou ninfomaníaca na rua, claro que me ofendo — mas eles são nossos amigos.” E acrescentou que todas as residentes sabiam que à meia-noite seriam gritadas aquelas palavras: “Dez minutos antes estávamos todas preparadas. Se os gritos nos ofendessem, estaríamos ali à espera?”. Uma outra estudante universitária e moradora atual da residência apontou, por sua vez: “É uma tradição, faz-se desde sempre. Vão castigar quem a começou a fazer há 40 anos e quem a tem feito desde aí?”
Também uma aluna de uma outra residência feminina próxima, Ana Villanueva, corroborou ao El Mundo que costuma ouvir gritos como estes. E descreveu o momento assim: “É habitual. Elas esperam que eles lhes gritem. Ficam vários dias à espera, comentam isso. É um ritual: eles abrem as janelas, gritam e elas gritam de volta“.