Um vídeo gravado e publicado no domingo nas redes sociais propagou-se como pólvora e tornou-se, nos últimos dias, epicentro do debate público em Espanha, unindo partidos políticos desavindos e colocando o país a discutir machismo, desigualdade de género e se “tradições” aceitáveis para quem as pratica, mas ofensivas para quem assiste de fora, são legítimas.

No vídeo, uma série de rapazes que vivem numa residência universitária masculina e católica de Madrid, a Elias Ahuja, participa em insultos dirigidos às habitantes de uma residência universitária feminina — Santa Mónica —, que fica em frente ao edifício. “Putas, saiam das vossas tocas como coelhas”, ouve-se um rapaz gritar, acrescentando: “São umas putas ninfomaníacas. Prometo-vos que vão foder todas na capea [prática tauromáquicas com populares]”.

Quando o jovem termina o seu grito à janela, com a expressão “Vamos Ahuja!”, uma série de outros rapazes que vivem na residência universitária assoma à janela, ligando as luzes e gritando como animais. Esta performance será conhecida por moradores de uma e outra residência como la Granja.

A violência contida nas palavras de ordem gritadas pelo rapaz e na reação entusiástica e de apoio dos seus colegas chocou Espanha. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, por exemplo, reagiu com indignação, escrevendo nas redes sociais: “Não podemos tolerar estes comportamentos que geram ódio e atentam contra as mulheres. É especialmente doloroso ver que os protagonistas são pessoas jovens. Nem um passo atrás. As políticas de igualdade são necessárias. Basta de machismo!”. E prosseguiu, pedindo uma “resposta ampla, unida e de rejeição comum”, destacando ser “importante que todos os partidos políticos digam não a estes comportamentos machistas”.

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O apelo de Sánchez teve resposta condizente dos partidos políticos, num amplo espectro partidário, da formação política de esquerda radical Unidas Podemos ao Partido Popular (de centro-direita conservador), que condenaram em uníssono esta ‘prática’.

Reação alinhada com o repúdio público do vídeo teve também o diretor da residência universitária masculina, que deu início ao processo de expulsão do aluno que entoou os gritos e que abriu ainda uma investigação para apurar que outros estudantes participaram nos urros. Citado pela imprensa espanhola, Manuel García Artiga acrescentou: “Condenamos absolutamente, radicalmente e totalmente estas expressões que vão totalmente contra os valores da nossa residência. São inaceitáveis e inexplicáveis”.

Também as autoridades judiciais de Madrid abriram já uma investigação para averiguar se os incidentes captados em vídeo configuram “crime de ódio”, avança o El País.

Alunas não se sentem ofendidas: “É uma tradição, eles são nossos amigos”

Apesar da reação de repúdio público generalizado, as raparigas a quem os gritos e insultos foram dirigidos não estarão particularmente ofendidas. O jornal espanhol El Mundo falou, por exemplo, com uma rapariga que viveu na residência entre 2008 e 2011, Paloma, e que revelou que estes gritos e insultos já na altura eram habitualmente trocados de parte a parte, quase como se fosse uma ‘tradição’ das residências. “Era habitual ouvir ‘Mónicas, putas’ todas as noites. Na verdade, a mim nunca me incomodou. Nunca senti que fosse especificamente para mim”, apontou.

Outra rapariga que vive atualmente no colégio feminino de Santa Mónica, e que preferiu não se identificar, confirmou ao El Mundo que o que aconteceu não foi caso único, sendo antes “habitual”. E, em nota partilhada nas redes sociais, as moradoras da residência feminina posicionaram-se, descrevendo os gritos como “prática habitual entre residências” e solidarizando-se com os rapazes: “Gostaríamos de expressar o nosso apoio face às declarações que se estão a fazer. Um vídeo viral sem contexto facilmente é mal interpretado.”

Em declarações ao El País, uma outra aluna que vive na residência, e que também preferiu não se identificar, afirmou: “Se me chamam puta ou ninfomaníaca na rua, claro que me ofendo — mas eles são nossos amigos.” E acrescentou que todas as residentes sabiam que à meia-noite seriam gritadas aquelas palavras: “Dez minutos antes estávamos todas preparadas. Se os gritos nos ofendessem, estaríamos ali à espera?”. Uma outra estudante universitária e moradora atual da residência apontou, por sua vez: “É uma tradição, faz-se desde sempre. Vão castigar quem a começou a fazer há 40 anos e quem a tem feito desde aí?”

Também uma aluna de uma outra residência feminina próxima, Ana Villanueva, corroborou ao El Mundo que costuma ouvir gritos como estes. E descreveu o momento assim: “É habitual. Elas esperam que eles lhes gritem. Ficam vários dias à espera, comentam isso. É um ritual: eles abrem as janelas, gritam e elas gritam de volta“.