O regresso de uma guerra ao território europeu, com a invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro, está também a ter consequências no mercado tecnológico do velho continente. A Ucrânia, um mercado onde várias empresas tinham instalados centros de outsourcing e de investigação e desenvolvimento (R&D, em inglês), concentrava vários projetos de transformação digital.

Com a chegada do conflito, algumas empresas que tinham projetos de outsourcing na Ucrânia e nos países vizinhos decidiram relocalizar projetos para outros países — de preferência afastados do conflito. O fenómeno não se fez sentir apenas na Ucrânia: devido às sanções aplicadas à Rússia, foram várias as empresas da área da tecnologia que decidiram fechar escritórios e terminar operações no país de Vladimir Putin.

A portuguesa Boost IT, unidade da Nexus Capital que está dedicada a projetos de nearshore, fornecendo serviços tecnológicos a outros países, está a sentir as alterações trazidas pela guerra ao panorama tecnológico. Em conversa com o Observador através de videochamada, Nuno Melo, co-fundador da Boost IT e CEO da Nexus Capital, explica que, com empresas à procura de novos locais para projetos tecnológicos, Portugal tem sido um dos mercados alternativos para evitar os países mais próximos do conflito.

A Nexus Capital foi a “holding” criada no ano passado para controlar a Boost IT, Hexis Technology Hub e participações em mais três empresas — a Martech Digital, a BYT e a Opulent Cloud.

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A própria empresa teve de interromper, há alguns meses, um projeto que estava em curso para o mercado russo. “Estávamos a desenvolver um projeto para a Rússia e tivemos de parar”, recorda Nuno Melo. A decisão foi de ambas as partes, explica. “Nem o cliente queria continuar na Rússia como para nós não fazia sentido. Perdemos esse projeto.”

No entanto, devido à distância de Portugal do epicentro do conflito, e com oportunidades na área de talento tecnológico, o responsável da Nexus Capital nota que a empresa tem registado interesse de clientes para instalarem projetos em solo português. Fruto dessa procura, o grupo já conseguiu recuperar da perda do projeto na Rússia. “Recuperámos essa mesma faturação também devido à localização geográfica de Portugal.”

Nuno Melo aponta que o “mercado americano parece ser aquele que mais ativamente está a procurar em Portugal”. “As empresas norte-americanas, um mercado que não tínhamos tão explorado, estão agora a recorrer a Portugal. Agora têm de migrar os centros”, contextualiza este responsável. “Temos tido vários pedidos [de empresas norte-americanas]. Estamos a aumentar a faturação, é um facto.”

Atualmente, a empresa já tem “quatro projetos norte-americanos” que não tinha antes do início do conflito. Nuno Melo antecipa que o salto na faturação se possa “medir em milhões”. “Talvez dois a três milhões de euros que se possa vir a fazer a mais, só com as empresas norte-americanas.”

O responsável da Nexus Capital não detalha quais as empresas norte-americanas nestes projetos, mas aponta que são “clientes variados, da área de transportes e de transformação de matérias-primas”.

A guerra não está só a trazer projetos para as empresas portuguesas. Através da Boost IT, o grupo tem também recrutado cidadãos ucranianos e dos países vizinhos que procuram refúgio em Portugal. Algumas dessas pessoas já foram contratadas para as operações da Nexus Capital. “Estamos a sentir que há muitos ucranianos que vieram para Portugal para fugir da guerra, para residir. Estamos a sentir um aumento muito grande de ucranianos e até de pessoas que vivem próximas do conflito, até pelas ameaças nucleares, que são as que inspiram maior preocupação”, explica Nuno Melo.

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Apesar das “perspetivas otimistas” de faturação, que apontam para que a empresa “duplique de tamanho”, Nuno Melo nota que, à semelhança de outras companhias, também não têm conseguido ficar imune ao “aumento de custos de várias dimensões, como a energia, a inflação que está muito alta, uma série de efeitos que a guerra provoca”.

Com a Boost IT a operar na área da transformação digital, o responsável da Nexus Capital sublinha que a área digital deve ser cada vez mais encarada pelas empresas como “uma ferramenta” para reduzir os custos de venda, especialmente no contexto macroeconómico mais desafiante.

Tech Visa é “excelente ferramenta”, mas podia ser “um pouco mais ágil”

Com o número de projetos a aumentar e as dificuldades de encontrar recursos humanos na área da tecnologia em Portugal, também a Boost IT tem procurado trabalhadores noutros países. Esta é, aliás, uma tendência há já vários anos visível no panorama tecnológico.

À semelhança de outras companhias, também o grupo Nexus tem recorrido ao Tech Visa, um programa que permite garantir que trabalhadores altamente qualificados, que sejam de países externos à União Europeia, possam aceder aos empregos criados por empresas portuguesas de forma mais simples. Nuno Melo explica que a empresa tem “usado bastante o Tech Visa”, inclusive para recrutar trabalhadores no Brasil. “É uma excelente ferramenta”, diz, ainda que reconheça que poderia ser “um pouco mais ágil”, nomeadamente a nível burocrático.

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“As dificuldades fizeram-nos contratar uma pessoa só para tratar de Tech Visa, para fazer o progresso de integração de pessoas de fora da União Europeia” – mas nem todas as empresas podem contratar alguém para tratar do processo, lembra.

De acordo com os números disponíveis no site do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação), que tem em mãos este programa, até 10 de outubro deste ano havia 400 empresas com certificação válida para esta medida, com mais de metade com códigos de atividade ligados à área da informática e tecnologias de informação. A última atualização de dados apontava para 5.382 termos de responsabilidade emitidos, com 92% dos termos emitidos a pessoas com formação na área das ciências informáticas. O maior número de termos de responsabilidade foi emitido a cidadãos brasileiros (3.911).