O antigo primeiro-ministro José Sócrates acusa o Estado de ser “diretamente responsável por quase nove anos dos dez que, até hoje, durou” a Operação Marquês, processo no qual o antigo governante chegou a ser indiciado por 31 crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal qualificada — a maioria dos quais acabou por cair, em abril de 2021, na sequência da fase de instrução.

Num artigo de opinião publicado esta quinta-feira no Diário de Notícias, José Sócrates fala em abstrato sobre o estado da justiça em Portugal, deixando a única referência direta ao processo que o envolve para um post-scriptum.

“O processo Marquês vai fazer dez anos. O inquérito durou quatro. A instrução durou três e meio. A disputa de ‘competência negativa’ entre juízes, para determinar quem era o titular do processo, durou oito meses. O juiz que fez a instrução concedeu quatro meses ao Ministério Público para fazer o recurso. Feitas as contas, que são fáceis de fazer, o Estado é diretamente responsável por quase nove anos dos dez que, até hoje, durou o processo. O discurso das ‘manobras dilatórias’ da defesa tem um sério problema com os factos”, diz Sócrates.

Recurso do MP para julgar Sócrates por corrupção chega à Relação de Lisboa

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No texto, porém, o ex-primeiro-ministro multiplica-se em críticas ao Governo por ainda não ter regulamentado a lei que impõe o sorteio de todos os juízes dos tribunais superiores, bem como aos tribunais por não a estarem a aplicar mesmo sem regulamentação.

Como noticiou o Expresso na semana passada, é justamente esta falha do Governo na regulamentação da lei a responsável por um novo atraso na Operação Marquês: a defesa de Sócrates vai pedir a recusa do coletivo de juízes que foi escolhido para avaliar um recurso do Ministério Público, argumentando que apenas a presidente do coletivo foi sorteada, mas não as juízas adjuntas, tal como a lei exige.

“O Parlamento legisla, a justiça não obedece”, escreve José Sócrates no artigo desta quinta-feira. “Preocupada com o escândalo de manipulação na distribuição de processos, a Assembleia da República aprovou em 2021 uma lei com uma intenção muito precisa — todos os juízes dos tribunais superiores devem ser sorteados.”

“Em concreto, a norma diz assim: ‘a distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério de antiguidade ou qualquer outro’. Nada nesta formulação jurídica é incerto, ou confuso, ou duvidoso”, escreve José Sócrates, para logo de seguida atacar a “circunstância extraordinária” que é o facto de o sistema judicial recusar aplicar a lei. “A razão invocada, dizem os senhores juízes, é que a lei não está regulamentada como está previsto o artigo 3.º e, assim sendo, nenhuma das suas normas pode entrar em vigor.”

Mas, continua Sócrates, “não é assim”. No entender do primeiro-ministro, “para se perceber que não é assim não é preciso ter uma especial preparação jurídica, basta não aceitar ser tomado por parvo”.

“Na verdade, como umas quantas leituras ensinam, nos casos em que uma determinada lei não foi regulamentada como devia, só não entram em vigor as normas que precisem dessa regulação específica, não as outras, aquelas que a doutrina classifica como sendo ‘normas exequíveis por si próprias’. Para quem está de boa-fé, a questão é fácil de compreender”, considera Sócrates.

A lei em questão, que foi aprovada pelo Parlamento em agosto de 2021, devia ter sido regulamentada pelo Governo em 30 dias, mas isso ainda não foi feito. E, como escrevia o Expresso na semana passada, os tribunais têm entendido que, sem a regulamentação necessária, a lei não está em vigor — pelo que apenas o juiz relator, mas não os adjuntos, que são escolhidos por nomeação.

É com base neste diferendo que a defesa de Sócrates tem apresentado vários pedidos de recusa dos juízes que têm sido escolhidos para apreciar os recursos que têm dado entrada no sistema judicial desde que, em abril, o juiz Ivo Rosa anunciou a decisão instrutória da Operação Marquês, segundo a qual Sócrates apenas deverá ser julgado por seis dos 31 crimes de que tinha inicialmente sido acusado.

Além do recurso apresentado pela defesa de Sócrates em relação àqueles seis crimes pelos quais o ex-pimeiro-ministro foi pronunciado, está agora também em jogo um recurso do Ministério Público em relação aos crimes pelos quais Ivo Rosa não pronunciou Sócrates. A nova recusa da defesa de Sócrates vai, naturalmente, provocar um novo atraso na Operação Marquês, processo que já se arrasta há quase uma década e que já levou até à prisão preventiva de Sócrates durante vários meses, sem que o ex-primeiro-ministro tenha ainda sido julgado.

Porque é que o recurso do MP para julgar José Sócrates demorou quase dois anos a chegar à Relação de Lisboa?

No artigo de opinião desta quinta-feira, José Sócrates acusa o Governo de inação e os tribunais de não aplicarem a lei. “Fora da lei, toda a ação estatal é arbitrária”, diz Sócrates, salientando que essa é uma regra primordial do Estado de Direito, a que se soma “a exigência de que as normas legais tenham na sua origem o povo soberano”.

“Ao ignorar as normas legais em vigor o sistema judicial pretende impor a sua vontade aos outros órgãos de soberania eleitos diretamente pelo povo. E quer fazê-lo em matérias que não são da sua competência como é o caso da feitura das leis”, acusa ainda Sócrates, sublinhando também que “o Governo está desde setembro de 2021 na situação de ilegalidade por omissão”, o que prejudica “um dos mais importantes princípios do direito democrático, o direito ao juiz natural”.

Sócrates atira ainda à ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro: “Quanto à política, a pobre da política, a lamentável política, é difícil dizer se fala ou se balbucia quando a senhora Ministra da Justiça afirma que haverá oportunidade de ‘revisitar algumas soluções vertidas na lei’. Sim, sim. Enquanto revisita e não revisita, ninguém cumpre a lei. Que situação extraordinária.”

Para o ex-primeiro-ministro, esta inação do Governo “não é desleixo, não incompetência, não se trata de falta de recursos”, mas antes “de uma opção política absolutamente ilegal e que não esconde a reserva mental com que o Governo sempre encarou a Lei da Assembleia”. Além disso, diz Sócrates, está em causa neste caso um “princípio político essencial”, o de que, “em democracia, é a política que faz o direito, não é o direito que faz a política”.

No artigo de opinião, Sócrates deixa ainda farpas ao diretor da Polícia Judiciária, ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça e à antiga ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, por ter dito recentemente em entrevista ao Observador que o combate às “manobras dilatórias” deve ser uma das prioridades do sistema judicial.