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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Paula Teixeira da Cruz. "Fiquei surpreendida com tantos casos no Governo. Estamos a aproximar-nos de uma crise profunda"

Ex-ministra da Justiça defende reforma profunda do processo penal, elegendo o ataque às manobras dilatórias e à litigância de má-fé como prioritária. E advoga a integração do Constitucional no STJ.

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Paula Teixeira da Cruz ficou surpreendida com os sucessivos casos que envolveram o Governo nos últimos anos e diz que nos estamos a aproximar de uma “crise profunda”. Em entrevista ao programa Justiça Cega, da Rádio Observador, a ex-ministra da Justiça entre 2011 e 2015 censura duramente os executivos de António Costa por não terem um “pensamento global” sobre a Justiça e por não terem feito uma única reforma.

“Ataque às manobras dilatórias é prioritário”

Teixeira da Cruz não poupa nas críticas à sua sucessora, Francisca Van Dunem, por ter tomado posse como juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça quando ainda era ministra, tendo-se aposentado sem nunca ter exercido funções como conselheira. E diz que o Governo nomeou para a direção nacional da Polícia Judiciária vários ex-membros de gabinetes ministeriais. “Isso não é saudável”, enfatiza.

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A ex-dirigente nacional do PSD defende uma reforma ampla para combater as manobras dilatórias e potenciar a eficiência do processo penal, nomeadamente nos grandes casos da criminalidade económico-financeira. E quer uma reflexão profunda sobre o papel do Tribunal Constitucional, questionando mesmo a sua continuidade ao defender que podia ser criada uma secção constitucional no Supremo Tribunal de Justiça. E lamenta não ter conseguido institucionalizado o crime do enriquecimento ilícito.

Esteve quatro anos no Ministério da Justiça e deve ter sido a ministra mais reformistas dos últimos 20 anos. O que ficou com pena de não ter feito?
Quando me deparei com o memorando assinado pelo Partido Socialista — um memorando para uma intervenção externa da troika —, olhei para o documento com uma certa perplexidade. Via ali objetivos experimentais, com as suas ideias experimentais e as suas comarcas-piloto. Eu entendia que tínhamos que ir às fundações do sistema, ou seja, à organização judiciária que tinha as suas raízes no séc. XIX, no Código de Processo Civil de 1961 e com uma jurisdição administrativa obsoleta e muito formalista. Daí ter começado com a organização judiciária. Recordo que na altura não tínhamos praticamente uma especialização do sistema e não havia responsabilização e escrutínio externo dos tribunais. Foi necessário introduzir tudo isso. Ainda hoje a lei de organização judiciária, aprovada na altura, tem um capítulo (o 90.º) dedicado à gestão dos tribunais. E o que diz esse artigo? O Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e o ministro da Justiça definem para o triénio os objetivos dos tribunais.

Isso não está a ser feito?
Não está a ser feito. Há mais: subsequentemente, as mesmas entidades redefinem anualmente esses objetivos. E mais ainda: de três em três meses as mesmas instituições monitorizam o cumprimento desses objetivos. Por outro lado, o presidente do tribunal de comarca tem a obrigação de sinalizar os processos em atraso.

Esse escrutínio também não existe?
Esse escrutínio está muito longe de ser feito. Isso permitira resolver muitos das obstruções que encontramos hoje no sistema judicial. Mais: foram instituídos conselhos consultivos por comarca, com representantes dos utentes, dos municípios e por advogados da comarca, e podem interpelar o presidente da comarca, o procurador coordenador ou o administrador judicial sobre a atuação do próprio tribunal — isso está muito longe de ter feito. Quando me pergunta o que eu tenho pena de não ter feito, digo-lhe claramente: a revisão integral do Código Penal e do Código do Processo Penal, a revisão do Código da Sociedades Comerciais (que está claramente obsoleto) e de não ter conseguido institucionalizar o crime de enriquecimento ilícito.

Mesmo depois de um primeiro apelo que não deu grandes resultados em 2017, o Presidente da República voltou a insistir num pacto de regime para uma reforma da justiça. Faz sentido esse pacto de regime?
Não falaria em pacto de regime, falaria num consenso amplo e generalizado para o que falta fazer na área da Justiça entre partidos, operadores judiciários, academia, etc. Desde que essas reformas não mexam em duas áreas centrais: a independência e as autonomias das magistraturas. Já temos visto, por várias alocuções, que há muitas tentações de ir por aí.

"O Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e o ministro da Justiça definem para o triénio os objetivos dos tribunais. Há mais: subsequentemente, as mesmas entidades redefinem anualmente esses objetivos. E mais ainda: de três em três meses as mesmas instituições monitorizam o cumprimento desses objetivos. Esse escrutínio está muito longe de ser feito."
Paula Teixeira da Cruz

Rui Rio queria ir por aí.
É verdade. E eu fui uma opositora desse pacto [proposto por Rui Rio]. Qualquer acordo tem de passar pelo respeito estrito desse princípio.  Muitas vezes, há pormenores subtis que desvirtuam esta independência e autonomia. O Governo do PS, na legislatura anterior, ampliou os impedimentos e os afastamentos dos juízes.

Isso resultou de um acordo entre o PS e o PSD de Rui Rio no Parlamento.
Ora bem. Isso serviu para quê? Para gerar mais expedientes dilatórios e diminuir as magistraturas.

Por isso mesmo, essa lei teve de ser revista pelo atual Governo?
Naturalmente.

“Governo Costa não fez reformas nem tem pensamento global sobre a Justiça”

O que lhe parece o trabalho do Governo de António Costa na área da Justiça desde 2015?
O meu problema é que eu não conheço o trabalho.

Não há trabalho?
O único trabalho que eu conheço foi mudar os nomes das secções de proximidade para juízos, fizeram um grande aparato sobre a abertura de secções de proximidade mas inúmeros trabalhos de colegas vossos foram aferir como funcionavam esses tribunais e concluíram que não funcionavam. Por alguma razão eu tinha encerrado os mesmos. Porque não tinham movimento. Os juízes iam lá uma vez por mês, por exemplo. Além dessas mudanças que não tiveram nenhuma efetividade, não conheço nenhuma alteração ou até pensamento global para o sistema da justiça. E eu deixei pronto o Código das Expropriações e a harmonização do Código do Processo do Trabalho com o Código de Processo Civil.

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A sua avaliação sobre o trabalho do Governo é muito negativa.
Só pode ser negativa porque nós ainda temos muito para mudar. À medida que o tempo vai passando, vamos estando em perda acrescida. Era já altura de estarmos a alterar o Código Penal, o Código de Processo Penal e hamornizar toda a legislação avulsa nessa área

Faz essa avaliação, apesar de a sua sucessora, Francisca Van Dunem, provir das magistraturas. Não foi útil ter uma magistrada como ministra da Justiça?
Vou ser um pouco irónica. A única atuação que conheço da então da ministra da Justiça em relação às magistraturas teve a ver, por um lado, com um ensaio para a revisão dos próprios estatutos que não teve um desfecho conhecido. E, depois, relativamente à própria, que, sendo ministra da Justiça, não se inibiu de ir tomar posse ao Supremo Tribunal de Justiça como juíza conselheira e voltar para o seu gabinete no Ministério da Justiça. E nunca ter ido ao Supremo…

Há quem diga que essa situação violou o princípio da separação de poderes, enquanto que outros criticaram o facto de Francisca Van Dunem apenas ter feito isso por causa da sua reforma.
(51m) Não farei aqui processos de intenção. Direi apenas que este não é um bom exemplo. E que os titulares de cargos políticos e públicos devem ser referenciais. Não estou a dizer que devam ser santos. Devem ser referências. E, sinceramente, não me parece muito referencial alguém abandonar a sua secretária no Ministério da Justiça para ir tomar posse no Supremo Tribunal de Justiça, nunca exercer funções enquanto conselheira e subsequentemente aposentar-se. Isso causa perplexidade e incredulidade. (51m40)

"Os titulares de cargos políticos e públicos não devem ser santos. Devem ser referências. E, sinceramente, não me parece muito referencial alguém [Francisca Van Dunem] abandonar a sua secretária no Ministério da Justiça para ir tomar posse no Supremo Tribunal de Justiça, nunca exercer funções enquanto conselheira e subsequentemente aposentar-se. Isso causa perplexidade e incredulidade."
Paula Teixeira da Cruz

PJ. “O único reforço de meios que eu vi foi a contratação de assessores de gabinetes ministeriais”

Vamos falar de ideias para reformar a Justiça, começando pela jurisdição pelo penal. Há uma questão central que tem gerado grande preocupação da opinião pública nos últimos 20/30 anos: um processo de criminalidade comum tem tempo médio resolução de um ano, enquanto que a criminalidade económico-financeira tem um tempo médio de resolução de 10 anos. Como resolvemos esta discrepância?
Ao contrário da perceção pública, os processos criminais representam 5% da totalidade dos processos que tramitam nos tribunais. Apenas 5%. Em termos de tramitação, o tempo médio de resolução da criminalidade comum rivaliza com a média da União Europeia.

Os processos que costumam durar em média cerca um ano.
Exatamente. Sobre a criminalidade mais organizada, temos problemas que começam na investigação. Ou seja, a agregação de processos que redundam em mega processos. Ora, esse tipo de processos implica um investimento em meios humanos e materiais que nem sempre é possível. Por outro lado, também é necessário a coadjuvação pericial.

O Governo reforçou os meios da PJ, nomeadamente periciais. O primeiro-ministro e o diretor nacional da PJ têm enfatizado esse investimento. Esse é o caminho correto?
Desconfiaria sempre dos elogios em boca própria. Não vejo grandes reforços na PJ. O que vi foi a direção nacional da Judiciária passar a contar com membros vindos dos gabinetes ministeriais. O que não me tranquiliza propriamente. Agora, o reforço em meios? Ainda há pouco tempo o concurso finalizado para a entrada de novos inspetores foi o concurso que eu deixei em 2015. Portanto, não estou bem a ver onde está o reforço.

"Não vejo grandes reforços de meios na PJ. O que vi foi a direção nacional [da Judiciária] passar a contar com membros vindos dos gabinetes ministeriais. A Judiciária tem como competência investigar, entre outros, crimes económico-financeiros. Parecer-me-ia saudável que se evitassem misturas entre aquilo que é operacional e o que não é operacional, nomeadamente o que é eminentemente político."
Paula Teixeira da Cruz

Essa contratação da PJ…
De nomeação para a direção nacional.

Essa nomeação de ex-assessores governamentais para a PJ pode colocar em causa a separação de poderes?
Não é saudável. Posso exibir a minha prática: não me passaria pela cabeça designar um ex-adjunto meu para a direção nacional da PJ. Isso não é saudável. A Judiciária tem como competência investigar os crimes mais complexos, entre eles os crimes económico-financeiros, como a corrupção, etc. Portanto, parecer-me-ia saudável que se evitassem misturas entre aquilo que é operacional e o que não é operacional, nomeadamente o que é eminentemente político.

“O ataque às manobras dilatórias deve ser uma prioridade”

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça defende desde o início do seu mandato, no que é seguido por vários magistrados judiciais e do MP e pelo diretor nacional da PJ, uma reforma do sistema de recursos para passarmos a ter uma justiça penal mais eficiente. O ataque às manobras dilatórias (nulidades, aclarações, reclamações, etc.) deve ser uma prioridade?
Com certeza que sim. Tal como fiz no Código de Processo Civil, e apesar da reforma cirúrgica que fizemos no Código de Processo Penal, essa mudança impunha-se mas não tive tempo para fazer isso.

Devemos reforçar os poderes do juízes, de forma a que o magistrado judicial possa dizer que determinada nulidade, aclaração ou reclamação não é fundamentada e a decisão não ter recurso?
Diria que esta é uma situação para reforço dos poderes do juiz. Continuam a existir muitas manobras dilatórias. E aí a lei tem de ser muito crua.

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Ninguém é condenado em Portugal por litigância de má-fé.
O instituto de má-fé processual foi muitíssimo alargada no nosso tempo mas não tem tido a aplicação desejada, nem adequada.

Os juízes dizem que não têm poderes suficientes para isso
Não estou a dizer que é a única solução. Mas se esse instituto for aplicado, podemos ter aí uma resposta [para os problemas das manobras dilatórias].

“Preferia ter um Tribunal Constitucional com uma raiz mais judicial e menos política”

A sua reforma do Código de Processo Penal tinha outra questão: os recursos para o STJ passaram a ficar circunscritos a matérias de direito, logo a matéria de facto passou a ser encerrada com a decisão da Relação. Devemos pensar em restringir os recursos para o Tribunal Constitucional (TC)? Cada vez mais juristas defendem essa reflexão.
Uma boa parte dos recursos para o TC não têm fundamento e por isso é que são liminarmente indeferidos.

Mas demora a chegar a rejeição liminar e, entretanto, os arguidos ganham algum tempo.
É verdade. Mas o indeferimento liminar é dado num prazo razoável. Pode densificar-se melhor os fundamentos dos recursos para o TC mas a questão de fundo é a lei de organização e funcionamento do TC e esse é um pensamento que nos leva muito longe. Deve o TC manter a sua génese tal como está delineado? Ou deve existir uma secção constitucional no Supremo Tribunal de Justiça? Obviamente que esta última opção implicaria uma revisão constitucional.

A pergunta vai mais no sentido de reformas cirúrgicas, mas essa ideia obriga a uma transformação profunda do nosso sistema judicial.
É verdade.

"Não podemos esquecer de que o Tribunal Constitucional tem uma raiz política. Logo, muitos dos seus acórdãos são influenciados pelas indicações partidárias que lhes estão subjacentes. Devemos pensar de forma muito profunda sobre este tema. Eu preferiria ter um Tribunal Constitucional com uma raiz mais judicial [como uma secção do Supremo Tribunal de Justiça]."
Paula Teixeira da Cruz

Está a querer dizer que, 50 anos após o 25 de Abril, devemos refletir sobre se devemos continuar com o TC.
Gosto de olhar para o Constitucional em termos de sistema de justiça e não podemos esquecer que se trata de um tribunal de raiz política. Logo, muitos dos seus acórdãos são influenciados pelas indicações partidárias que lhes estão subjacentes.

Isso costuma acontecer mais com os juízes nomeados pela esquerda. No tempo da troika, vários dos juízes nomeados pelo PSD e pelo CDS votaram contra o Governo.
É verdade. Seja como for, devemos pensar de forma muito profunda sobre este ponto. Eu preferiria ter um Tribunal Constitucional com uma raiz diferente.

Com uma raiz mais judicial, logo, sendo uma secção do Supremo Tribunal de Justiça?
Sim, com uma raiz mais judicial.

Vários países europeus têm, em certas circunstância, a regra de se avançar para o cumprimento da pena após o encerramento da matéria de facto. No nosso país vigora a regra da presunção da inocência até ao trânsito em julgado de uma condenação. Em nome da eficiência, devemos pensar no cumprimento de uma pena de prisão após a decisão dos Tribunais da Relação?
A eficiência é um valor e um objetivo, mas não pode ser o único.

Não pode ser absoluto.
E não pode prevalecer sobre aquilo que são direitos, liberdades e garantias. E essa ideia coloca em causa isso. A não ser em casos muito particulares. Mas também é preciso recordar que já temos mecanismos de medidas de coação, como a prisão preventiva, para crimes mais graves. O ponto é acelerar os tempos de processos de resolução na primeira e na segunda instância e restringir eventualmente os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi o que nós fizemos, e eventualmente para o Tribunal Constitucional. Como já disse, os processo criminais representam apenas 5% de todos os processos tramitados nos tribunais portugueses. Mas claro que são os processos que causam mais alarme público.

Porque colocam em causa a confiança nos cidadãos na própria Justiça…
… e como a Justiça é um pilar da própria democracia, colocam em causa a própria femocracia. Por isso é que é importante não termos uma desqualificação dos agentes da própria Justiça: magistrados, advogados, oficiais de justiça, administradores de insolvência, etc..

Precisamos de um tribunal de competência especializada e com competência territorial nacional para julgarmos os casos mais complexos relacionados com o crime económico, mas também os maiores casos de droga, terrorismo, tráfico de pessoas?
Tenho algum receio de criar tribunais de julgamento em função da moldura penal — é disso que estamos a falar — em função do que aconteceu com os tribunais plenários no tempo da ditadura.

Não passaram já anos suficientes para essa comparação perder sentido?
Pode fazer. Já passaram muitos mais anos sobre a Inquisição e, mesmo assim, ainda temos muitos traços culturais inquisitoriais. Tenho sempre muito receio do chamado “ovo da serpente”. Não me repugna e é sempre possível criar os tribunais de competência especializada em função de determinado tipo de crimes e da sua complexidade. Mas atenção: isso é filigrana jurídica. Agora, em função da moldura penal e dos seus autores, não. Isso é uma questão de princípio.

"Não entendo a questão do inversão do ónus prova. Em termos fiscais, quem tenha sinais exteriores de riqueza já pode ser tributado. Mas o enriquecimento ilícito vai continuar a ser apresentado como uma inversão do ónus da prova, quando no fundo não se trata disso. Trata-se de uma justificação."
Paula Teixeira da Cruz

Falando em filigrana jurídica: continua a defender o crime de enriquecimento ilícito, apesar de já ter sido chumbado duas vezes pelo Tribunal Constitucional?
É verdade: eu não consegui ver aprovado o crime de enriquecimento ilícito. Mas conseguimos, todavia, consagrá-lo ao nível da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. O que não deixa de ser extraordinário. (37m50) O que me causa perplexidade? Em termos de direito fiscal, temos uma série de situações de inversão do ónus da prova.

O contribuinte é que tem de provar que não deve. E o TC já disse que isso é constitucional.
Exatamente. É essa comparação que eu não posso deixar de fazer e não posso deixar de lamentar profundamente. Quer se queira, quer não, o enriquecimento ilícito transformou-se  numa questão política porque não agrada a quase ninguém. Há uma expressão que ilustra muito bem esta situação: quem cabritos tem e cabras não tem, de algum lado lhe vem.

Há um célebre acórdão da Relação de Lisboa no qual foi invocado esse ditado popular a propósito de José Sócrates.
Não entendo a questão do inversão do ónus da prova. Em termos fiscais, quem tenha sinais exteriores de riqueza já pode ser tributado. Mas o enriquecimento ilícito vai continuar a ser apresentado como uma inversão do ónus da prova, quando no fundo não se trata disso. Trata-se de uma justificação. Estamos todos — quando digo todos estou a falar da comunidade — propositadamente a jogar com as palavras. Não é mais do que isso. Não vamos dramatizar.

Temos tido nos últimos meses uma espécie de avalanche de novas investigações de corrupção, nomeadamente envolvendo autarcas  (maioritariamente do PS) e também alguns membros do Governo. Ficou surpreendida?
De alguma forma, sim. Com certeza que há gente idónea e sabedora [no Governo]. Pode acontecer a qualquer pessoa ter um problema judicial. Agora, não pode ser por causa do exercício de funções públicas. Outra questão é que estamos a aproximar-nos de uma crise profunda, com esta disfuncionalidade governamental em que ninguém tem responsabilidade por nada e ninguém sabe de nada.

“Não me repugna introduzir a jurisdição administrativo-fiscal no Supremo”

Em termos estatísticos, a jurisdição administrativo-fiscal é de longe a que compara pior com os outros países da União Europeia: com um tempo médio de resolução superior a 7 anos.
Alguns processos até demoram 20 anos.

Exatamente. Sete anos é apenas um tempo médio. Como ministra da Justiça, fez uma reforma nesta área mas os dados estatísticos continuam a ser maus. O que é que podemos fazer mais?
Vamos por partes. O que neste momento inquina as estatísticas são os processos fiscais. A jurisdição é administrativo-fiscal mas há dois tipos de processos: os processos administrativos e os processos fiscais. Nós fizemos uma reforma profundíssima na jurisdição administrativa, indo à raiz do problema: um novo código de procedimento de administrativo, com um processo mais célere, muito mais simplificado. Mas esse novo código não está a ser aplicado em algumas situações.

Como por exemplo?
Um dos objetivos da reforma foi acabar com o chamado direito circulatório — as circulares da Direção-Geral de Contribuições e Impostos [hoje Autoridade Tributária] que derrogavam ou derrubavam as leis e os decretos-leis porque o Fisco interpretava como queria. Nos termos do Código de Procedimento Administrativo que aprovámos isso passou a ser impossível. Isso verifica-se? Não.

"Acho até muito boa ideia integrar os tribunais administrativos e fiscais na organização judiciária comum como duas secções especializadas [uma para a jurisdição administrativa e outra para a tributária]. O Conselho Superior da Magistratura também podia ter a gestão dos tribunais administrativo-fiscais. Mas lá está: é necessário um consenso sobre estas matérias e até uma revisão constitucional."
Paula Teixeira da Cruz

O cancro do sistema são os processos fiscais?
Esse é o grande cancro porque no processo fiscal está tudo por fazer, seja no procedimento fiscal, seja no processo tributário. A única coisa que se fez foi abrir a porta à arbitragem, que tem corrido relativamente bem, mas que tem um impacto diminuto.

O presidente do Supremo defende o fim da especialidade da jurisdição administrativo-fiscal e a sua integração numa secção especializada no STJ e passar as competências de gestão e disciplinares para o Conselho Superior de Magistratura (CSM). Seria uma solução?
Acabar com a especialização administrativa, nunca. Estamos a falar de coisas tão diferentes como o direito do urbanismo, o ordenamento do território, a função pública…

Uma área muito vasta
Vastíssima. Sempre defendi a especialização dos tribunais. Extinguir a especialização não faz sentido. Outra coisa é integrar os tribunais administrativos e fiscais na organização judiciária comum como duas secções especializadas [uma para a jurisdição administrativa e outra para a tributária], isso não me repugna nada. Acho até muito boa ideia. Quanto a existir uma organização de gestão e disciplinar própria para os tribunais administrativo-fiscais, não vejo necessidade. O CSM podia perfeitamente fazer isso. Mas lá está: é necessário um consenso sobre estas matérias e até uma revisão constitucional.

A defesa de uma reforma para reforçar os direitos e garantias de defesa dos contribuintes

Há uma área em que o Estado apostou muito na eficiência: a área fiscal, nomeadamente na fase administrativa da Autoridade Tributária, em que a rapidez e a eficiência para cobrar impostos é muito elevada. Como se pode reforçar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos — que ficam em causa em nome da super eficiência do Fisco?
O Código de Procedimento e de Procedimento Tributário é um instrumento essencial para reforçar os direitos e garantias dos contribuintes. Por outro lado, o direito à informação deve ser vertido e muito mais alargado nesse mesmo código. Em bom rigor, hoje este direito do contribuinte é meramente formal porque o que se espera é que o contribuinte pague ou então que seja executado — e executado de uma forma especial e célere e sem grandes garantias. 

Rui Rio chegou a propor no seu pacto de justiça que se eliminasse a obrigatoriedade de depositar uma caução nas situações em que tal é obrigatório para o contribuinte reclamar. Concorda?
Sim. Essa ideia de deixar de prestar caução é reclamada por vários operadores judiciais desde há muito tempo. Quer para os contribuintes individuais, quer para os coletivos.

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