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No dia 17 de maio de 2022, após 82 dias de resistência, os militares ucranianos abandonaram o complexo siderúrgico de Azovstal, em Mariupol. Todos os olhares se voltavam para a fábrica onde durante semanas se tinham refugiado cerca de 2.600 civis e soldados, sob  bombardeamentos russos constantes.

Para Kiev, Azovstal tornara-se um símbolo da luta ucraniana, o último reduto de resistência numa cidade que caíra às mãos dos russos. Para Moscovo, transformara-se numa frustração, o último obstáculo no caminho para proclamar o controlo total sobre Mariupol.

Até agora poucos detalhes foram divulgados sobre as negociações secretas que culminaram na evacuação da fábrica. Uma investigação da CNN revelou que a retirada de Azovstal foi negociada cuidadosamente entre oficiais ucranianos e generais de topo do Presidente russo, num processo que implicou semanas de conversações e viagens por um território devastado.

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O legislador ucraniano e os dois generais de Putin que negociaram a retirada de Azovstal

Em abril de 2022, o Presidente russo deixava aos seus comandantes ordens claras sobre Azovstal: “Bloqueiem o complexo industrial para que nem uma mosca possa escapar”. A situação dos civis e militares refugiados na central — uma das maiores instalações metalúrgicas da Europa — começava a deteriorar-se. Os bombardeamentos russos, que se prolongavam há várias semanas, eram constantes, as reservas de comida e água começavam a esgotar-se e aumentava a necessidade de cuidados médicos.

Ninguém saía, ninguém entrava. O impasse prolongava-se sem que houvesse uma solução à vista. Foi nessa altura que um pequeno grupo de ucranianos e russos começou negociações secretas para pôr fim ao cerco de Azovstal e retirar em segurança os civis e militares, revelou a CNN numa investigação publicada esta quinta-feira.

O canal norte-americano divulgou que a iniciativa para as negociações — que já tinham falhado noutras ocasiões — partiu de Oleksandr Kovalov, um membro do parlamento ucraniano e veterano da guerra soviética afegã, onde serviu como paraquedista.

Em declarações à CNN, o legislador disse que ao assistir à deterioração da situação em Azovstal pensava em como podia ajudar. Deu o primeiro passo nesse sentido em abril, ao abordar um contacto em Moscovo dos serviços secretos russos (FSB, antigo KGB). À conversa com Valentin Kryzhanovsky — antigo agente do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) que desertou para a Rússia em 2014 –, lembrou a situação precária de centenas de civis presos em Azovstal. “Há mulheres e crianças. Vamos pensar em algo”, disse-lhe Kovalov.

Foi o primeiro passo num processo de negociação que viria a envolver diretamente dois generais de topo do Presidente russo: o tenente-general Vladimir Alexseyev e o major-general Alexander Zorin, ambos nascidos na Ucrânia e membros da agência de informação militar russa GRU.

Os dois generais são bem conhecidos das autoridades ocidentais. Vladimir Alexseyev é alvo de sanções dos Estados Unidos (desde 2016), pelo envolvimento em atividades para minar o processo democrático e eleitoral dos EUA, e também da União Europeia e do Reino Unido (2019), acusado do envenenamento do espião Sergei Skripal. Já Alexander Zorin serviu como enviado de Vladimir Putin na Síria, tendo assumido um papel ativo nas conversações do regime de Bashar al-Assad com a oposição e fações rebeldes na Síria.

As viagens de negociações por uma Mariupol sob ocupação: “o coração da guerra”

Dias depois das tropas russas invadirem o território ucraniano (24 de fevereiro de 2022), Mariupol, uma cidade onde residiam cerca de 430.000 pessoas, viu-se cercada pelas forças russas.  Nos primeiros dias de março do ano passado, as autoridades ucranianas descreviam rápidos avanços russos pelo território e denunciavam que a cidade estava à beira de uma “catástrofe humanitária” devido aos constantes bombardeamentos. Semanas depois, a enorme fábrica de Azovstal tornava-se o último reduto de resistência na cidade, que caíra às mãos das tropas de Moscovo.

Quando Kovalov atravessou pela primeira vez o território ocupado de Mariupol no dia 25 de abril testemunhou o grau de destruição provocado pelos bombardeamentos e combates na cidade. Esta foi a primeira de três viagens que fez até lá, já depois de obter luz verde dos serviços de informação militares da Ucrânia — liderados por Kyrylo Budanov — para avançar com as negociações.

Esta não era a primeira tentativa para aceder ao complexo de Azovstal, revelou Kovalov à CNN. “Já tinham sido feitas 11 missões anteriores sem sucesso. Ninguém acreditava que era possível retirá-los de lá“, recordou.

Na primeira viagem o legislador ucraniano esteve reunido com Kryzhanovsky e com o tentente-general russo Andrey Sychevoy. Numa estrada deserta, rodeada pelas marcas de destruição, os três sentaram-se a negociar à volta de uma pequena mesa, como é possível ver nas imagens publicadas pelo canal norte-americano. Do encontro uma decisão sobre a retirada de civis era a prioridade.

Era uma cidade praticamente apagada da face da terra. Estávamos no coração da guerra”, descreveu Kovalov.

O ucraniano disse ter conseguido convencer a delegação russa de que deixar sair as crianças, as mulheres e os feridos de Azovstal era uma “ato de humanidade”. A 2 de maio começava o tão aguardado processo de retirada de civis. Mais de 100 pessoas partiam pouco depois de Mariupol rumo a Zaporíjia, numa travessia complexa detalhada ao Observador por um porta-voz da Organização das Nações Unidas.

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O momento mais temido: a hora da “confiança”

Ultrapassado o primeiro obstáculo das negociações, retirar todos os civis do complexo de Azvostal, impunha-se a segunda fase: chegar a um acordo sobre a saída, em segurança, dos militares que continuavam a resistir.

A nove de maio, enquanto a Rússia assinalava com pompa e circunstância o Dia da Vitória, para celebrar o 77.º aniversário da rendição da Alemanha nazi, decorria em Mariupol uma segunda ronda de negociações.

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Kovalov descreveu à CNN que retornou à cidade acompanhado de Dmitrii Usov, um representante dos serviços de informação militares ucranianos. Desta vez, sentava-se à mesa das negociações com Zorin e Alexseyev, que fazia “pausas regulares” para através de uma conexão por satélite contactar com o Ministério da Defesa russo.

À medida que um acordo se aproximava, Kovalov visitou Mariupol uma terceira vez para um último encontro no dia 16 de maio. A delegação russa reuniu-se então com um grupo de pelo menos seis militares ucranianos, entre os quais Denys Prokopenko, um dos comandantes que liderou durante várias semanas a resistência na cidade.

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Estes eram os momentos “mais temidos”, “os momentos de confiança”, explicou Kovalov. “Quando fizemos tudo para os que os dois lados se juntassem e olhamos nos olhos uns dos outros, o lado russo prometeu que haveria uma saída civilizada para os nossos soldados“, afirmou.

O acordo ficou, então, fechado. Haveria um cessar-fogo mútuo, uma retirada civilizada e em segurança dos militares ucranianos, que ficariam sob custódia russa. No próprio dia a vice-ministra da Defesa ucraniana, Anna Malyar, anunciava que 53 militares feridos tinham sido levados para um hospital em Novoazovsk ,ocupado pelas forças russas, e 211 tinham sido levados para a cidade de Olenivka, uma área na região do Donetsk controlada pelos separatistas pró-russos.

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As operações de resistência em Azovstal terminaram oficialmente no dia seguinte, 17 de maio, após 82 dias no complexo. O Estado Maior das Forças Armadas ucranianas reconhecia então a bravura dos militares, que descreveu como os “heróis do nosso tempo”.