Se dúvidas ainda existissem, aqueles últimos momentos da etapa com chegada no Grand Colombier eram de novo a prova de como a decisão da Volta a França pode estar em qualquer pormenor. Aliás, aqueles quatro segundos ganhos por Tadej Pogacar para ir buscar mais quatro das bonificações do terceiro lugar mostravam mais uma vez como a luta com Jonas Vingegaard é um dos maiores duelos da atualidade no desporto, um ângulo explorado este sábado pela Marca recordando todas as outras grandes “guerras” nas mais variadas modalidades. Mais: o jornal espanhol fazia mesmo um desenho daquilo que seria o corredor ideal para ganhar o Tour, “com menos de 69 quilos, alheio ao que diz a imprensa e com uma ponta de sorte”. Ainda assim, havia um dia chave pela frente. Um dia no meio dos Alpes que poderia trazer mexidas na classificação.

Michal Kwiatkowski andou aos S’s nas estradas onde Pogacar voltou a avisar Vingegaard

A 14.ª etapa apresentava um total de cinco subidas, uma segunda metade de tirada mais exigente do que a primeira e uma senhora parede de Joux Plane que para muitos surgia como um dos pontos mais complicados da edição de 2023 com mais de dez quilómetros com uma pendente média de 8,5% sem pontos para respirar antes de uma descida final de dez quilómetros que seria apenas para tentar remediar o que se passara antes, num traçado que os corredores tentaram mudar mas que a organização manteve com a garantia de que todas as condições de segurança estavam asseguradas incluindo o reforço das zonas mais sinuosas com colchões. Mais um desafio para a UAE Team Emirates e a Jumbo, mais um obstáculo para Tadej Pogacar e Jonas Vingegaard num dia em que as equipas contavam mas era nos chefes de fila que estava a decisão.

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“Teria sido muito bom conseguir a vitória no Grand Colombier mas houve um grande mérito da fuga, que acabou por imperar. O Michal Kwiatkowski estava super forte mas, no final, também foi um dia bom para nós porque recuperei alguns segundos. Podemos dizer que foi uma vitória na luta pela geral. O Jonas [Vingegaard] é um corredor muito bom, um dos melhores trepadores do mundo, e é difícil fazer descolar. Tentei com um sprint longo mesmo correndo o risco de não acabar mas valeu a pena”, comentara Tadej Pogacar antes do dia em que iria atacar a camisola amarela frente a um Vingegaard mais expectante.

[Recorde aqui a etapa de Cambasque onde Pogacar ganhou 28 segundos a Vingegaard]

Rúben foi um Guerreiro que não teve armas para Pogacar (tal como Vingegaard)

“Queria manter a amarela porque o Pogacar é um corredor mais explosivo do que eu num final como este e por isso foi bom só perder quatro segundos. Tenho confiança em mim, nas minhas forças, estou bem e as próximas etapas serão interessantes. Ele é um dos melhores ou mesmo o melhor do mundo mas fomos sempre bons lutadores um com o outro. Pressão? Não, se ganhar, está bem; se não ganhar, dei o máximo”, apontava o dinamarquês, quase que tentando esvaziar algo a que seria inevitável fugir: entre um dos duelos mais seguidos e acompanhados da atualidade, esta poderia ser uma jornada chave. Errar era proibido.

Num dia que até começou com alguma chuva e piso molhado, ao contrário do sol e calor sentidos ao longo de várias etapas, a nota inicial acabou por ser aquela que ninguém gostaria de dar e que fez com que a tirada estivesse mesmo neutralizada na sequência de uma queda que afetou vários corredores, naquela que foi a primeira grande queda geral nesta edição do Giro. Jai Hindley ficou com algumas feridas, Sepp Kuss também pareceu ter algumas dificuldades ao contrário de Jonas Vingegaard, Tadej Pogacar conseguiu passar porque rodava mais à frente. Entre os 30 afetados, António Pedrero, da Movistar, ficou em pior estado e acabou por ser levado para o hospital mas também Louis Meintjes, candidato ao top 10 da Intermarché, desistiu.

Com cuidados extra à mistura, tendo em conta as explicações que apareciam sobre a queda massiva e que apontavam para uma estrada como manteiga devido às primeiras chuvas de verão, começaram as esperadas fugas com Lars van der Berg a descolar e a ter depois Alaphilippe, Neilands, Martínez e Lutsenko a saírem também do pelotão. Daniel Martínez seria o primeiro a passar pelo Col de Saxe, sendo que as más notícias continuavam a chegar com mais uma queda que ditou abandono, neste caso de Esteban Chaves, sendo que pouco depois também Romain Bardet e James Shaw foram ao chão. O grupo da frente aumentava, mesmo sem grande distância para o pelotão, e os nomes fortes que andavam na fuga aumentavam a luta pela primeira passagem de montanha, neste caso com Giulio Ciccone a ser o primeiro em Col de Cou à frente de Neilson Powless, Julian Alaphilippe, Thibaut Pinot e Daniel Martínez, que fechou esta zona de pontos.

Ciccone, Pinot e López ainda tentaram fugir mas o grupo da fuga, sempre controlado por um pelotão que tinha a Jumbo na frente a marcar o ritmo, voltava a ficar mais extenso com 11 corredores: Daniel Martínez, Giulio Ciccone, Guillaume Martin, Hugo Houle, Michael Woods, Thibaut Pinot, Mikel Landa, Wout Poels, Alexey Lutsenko, Gorka Izagirre e Alex Aranburu. Ciccone voltou a ser o mais rápido na passagem por Col de Jambaz, à frente de Aranburu e Woods, mas aquilo que mais ficava na retina era a forma como um grupo de fugitivos com tantos nomes fortes não conseguia descolar de vez do pelotão, que estava a 30 segundos.

A 58 quilómetros do final, o pelotão ainda liderado pela Jumbo conseguiu apanhar o último fugitivo, Giulio Ciccone, e deixou tudo em aberto para aquilo que se seguiria. O ritmo que a formação de Vingegaard podia causar mossa e nem mesmo quando assumiu a liderança parou, o que provocou uma seleção apertada que deixou a questão resumida a Jumbo, UAE Team Emirates, Bora e pouco mais, sendo que a 50 quilómetros as movimentações começaram a aparecer com Pogacar a querer fazer a descida na frente do dinamarquês entre muitos cuidados. Lá atrás, as más notícias “sucediam-se”, agora com o abandono de Rúben Guerreiro.

A Jumbo surgia com quatro corredores (Wout van Aert, Sepp Kuss, Wilco Kelderman e Jonas Vingegaard), a UAE Team Emirates com outros quatro (Felix Grossschartner, Rafal Majka, Adam Yates e Tadej Pogacar) e havia ainda mais oito corredores em busca da vitória na etapa tendo em conta a marcação que existia entre os dois primeiros da classificação: Jai Hindley (Bora), Carlos Rodriguez (Ineos), Pello Bilbao (Bahrain), David Gaudu (Groupama), Simon Yates, Chris Harper (Jayco), Guillaume Martin (Cofidis) e Felix Gall (AG2R). E a tónica mantinha-se, com a Jumbo na frente e a UAE Team Emirates na roda sem sinais de ataques até aos últimos 20 quilómetros, quando Kuss voltou a assumir a liderança com o intuito de lançar Vingegaard.

A primeira nota começou por vir de Jai Hindley, que começou a ceder com Carlos Rodríguez a colar no grupo da frente por mais alguns metros em busca de encurtar a desvantagem para a terceira posição, mas tudo iria ficar resumido a três corredores com a UAE Team Emirates a tirar as cartas à Jumbo, colocando Adam Yates na frente com um ritmo altíssimo após uma troca de olhares com Pogacar e Vingegaard a ficar na roda do esloveno já sem a ajuda de Sepp Juss (Wout van Aert e Kelderman já tinham deixado a dianteira). A 15 quilómetros do final, Pogacar acelerou, Vingegaard resistiu até ao limite mas 20 metros depois ficou atrás do esloveno, que não conseguiu de seguida dar a “sapatada” final permitindo que o dinamarquês controlasse.

Ainda houve algumas alturas em que a distância terá chegado aos sete/oito segundos mas Vingegaard ainda foi buscar o adversário direto, tendo depois alguns metros de estudo mútuo para perceber no “jogo do gato ou do rato” quem poderia voltar a atacar sabendo que Pogacar é mais explosivo a atacar ou a reagir depois aos ataques. Havendo bonificações à mistura, alguém teria de fazer algo mas quando o esloveno atacou teve de travar porque as motas estavam à frente do seu caminho, tirando o fator surpresa que ainda poderia haver e permitindo que Vingegaard ganhasse três segundos a Pogacar no duelo das bonificações, sendo que essa “pausa” permitiu que Carlos Rodríguez (com Adam Yates) chegasse e passasse a dupla como uma mota, ganhando uma pequena vantagem que chegou para vencer a etapa com Pogacar em segundo.

Naquela que foi a segunda vitória consecutiva da Ineos depois do sucesso de Michal Kwiatkowski na véspera, Carlos Rodríguez aproveitou aquele erro da organização para se aproximar de forma decisiva da dupla da frente e deu tudo com sucesso para ganhar na parte da descida, dando um salto enorme na classificação a nível de tempo ao ficar na terceira posição. Assim, contas feitas, Vingegaard mantém a liderança com dez segundos de vantagem sobre Pogacar (ganhou três segundos na primeira bonificação, perdeu dois depois na chegada) e o espanhol ficou a 4.43, à frente de Jai Hindley por um segundo (4.44). Seguem-se Adam Yates (5.20), Sepp Kuss (8.15), Simon Yates (8.32), Pello Bilbao (8.51), Felix Gall (12.26) e David Gaudu (12.56) no top 10 antes de mais uma etapa a subir este domingo, desta com chegada em Saint-Gervais.