Cento e cinquenta dias. O facto de celebrar os sucessos no final das etapas com a mulher e a filha não apagava todo o trabalho (ou os “muitos sacrifícios”, como o próprio descreveu) que teve de ser feito na preparação da Volta a França mas, ao contrário do que aconteceu em 2022, Jonas Vingegaard celebrava a segunda vitória consecutiva já a pensar nas próximas conquistas na corrida francesa. “É especial, uma prova muito especial. Voltarei para ganhar novamente”, apontava antes da chegada aos Campos Elísios, na projeção de uma edição de 2024 diferente em termos de contexto por ser quase colada ao início dos Jogos Olímpicos em Paris. No entanto, não foi apenas isso que mudou no dinamarquês de um para outro triunfo no Tour.

A maior vitória não foi o Tour, foi ganhar a Pogacar: Meeus vence nos Campos Elísios, Vingegaard conquista segunda Volta a França

“Mais duro em termos físicos ou mentais? Preciso de mais tempo para responder a essa pergunta, daqui a uma semana saberei. No ano passado, aguentei bem. A nível mental é duro mas preciso de tempo”, frisara antes de um anúncio que apanhou toda a gente desprevenida, incluindo a organização da terceira e última grande volta de 2023: vai estar presente na Vuelta com Primoz Roglic e provavelmente Sepp Kuss, formando uma super equipa da Jumbo na segunda participação em Espanha depois de ter sido o gregário de Roglic no triunfo do esloveno no ano de 2020, condicionado pela Covid-19 (terminou na 46.ª posição). Se em 2022 Vingegaard fez apenas a Croatia Race e a clássica da Lombardia após o Tour, agora vai elevar a fasquia.

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O dinamarquês respira confiança, sobretudo por tudo o que conseguiu alcançar na terceira e última semana. O autêntico colapso de Tadej Pogacar na etapa de Courchevel foi o golpe que decidiu de vez a Volta a França depois de uma primeira semana com uma vitória para cada lado e de uma segunda semana em que andaram em empate técnico, mas o desequilíbrio maior começou no contrarrelógio em que a melhor versão de Jonas Vingegaard coincidiu com a pior face do esloveno. A forma como o chefe de fila da Jumbo ganhou mais de 1.40 em 22 quilómetros ao homólogo da UAE Team Emirates foi “o” momento do Tour (para alguns, como Tom Dumoulin, tratou-se de “o melhor contrarrelógio que viu”) e originou também algumas suspeitas em publicações francesas que alegavam “questões legítimas que ardem nas cinzas do passado”.

“O contrarrelógio foi um dos melhores dias da minha vida em cima de uma bicicleta, tão bom que numa certa fase até duvidei daquilo que estava a fazer, com números muito altos. Preparei durante muito tempo este momento e valeu a pena. Na zona plana do percurso, queria ver se me fixava nos 360 watts mas entre as duas subidas acabei por chegar aos 380. Foi uma surpresa até para mim, não esperava que corresse tão bem mas o plano foi perfeito. Senti-me muito bem, foi o melhor contrarrelógio que já fiz”, comentou o dinamarquês após a vitória na chegada a Combloux com o tempo canhão que deixou o mundo surpreendido.

“Entendo o ceticismo, entendo que é difícil para algumas pessoas acreditarem no ciclismo depois do que aconteceu no passado mas nós somos corredores diferentes dos de então. Posso dizer com a minha mão no coração: não tomo nada, não tomo nada que seja proibido. Não tomo nada que não daria à minha filha. Posso dizer que estes não são tempos como os do Lance Armstrong. Nós usamos um combustível diferente do de Armstrong. A modalidade está claramente diferente agora. Estou feliz pela vitória e 100% certo de que ninguém me tirará essas vitórias”, salientou Vingegaard ao jornal belga Het Laatste Nieuws.

Se a reação do dinamarquês ainda foi ponderada, a do diretor da Jumbo, Richard Plugge, foi bem mais dura. “Olhamos para os outros e vemos o que eles fazem. Por exemplo, ficamos no mesmo hotel que uma equipa francesa no dia de descanso. Vimos ciclistas beberem grandes cervejas. O álcool é um veneno, especialmente quando estás cansado. No início da última semana do Tour, que é a mais importante, tens de ser muito cuidadoso com o que bebes e comes. Na nossa equipa ninguém bebe álcool, porque dá cabo de ti, nem mesmo aqueles que não competem devem consumir. Abrimos as nossas portas, respondemos a todas as questões mas vocês têm de olhar para o outro lado”, apontou, visando a formação da Groupama, que ficou furiosa com esse comentário do líder da Jumbo dizendo que era “mesquinho”, “pobre” e… mentira.

“O que podemos fazer mais? Temos duas equipas de câmaras connosco durante todos os dias, da Netflix e Amazon, e tivemos ainda um escritor com a equipa durante três anos. Tivemos um jornalista do L’Équipe connosco num estágio durante alguns dias. Temos sempre as portas abertas e creio que os jornalistas deviam esforçar-se um pouco mais para analisar o que acontece. Acho que é também a tarefa e responsabilidade de alguns jornalistas olhar para as coisas de forma mais aprofundada, ao invés de simplesmente espalhar suspeitas. Claro que esta modalidade tem um passado disto mas acho que a WADA [Agência Mundial Anti-Doping] já disse que éramos a pior criança da escola e agora estamos no top 3. Abrimos as nossas portas, somos transparentes, fazemos o que podemos”, acrescentou, perante uma ideia que não coloca tanto na órbita de Jonas Vingegaard mas sim de qualquer corredor que consiga ser mais forte.

“Se não formos nós, se for o [Tadej] Pogacar ou outro qualquer, é sempre igual. Aparentemente, se ganhas no ciclismo, para os franceses nunca o fazes de forma correta. A eles, digo-lhes ‘Anda cá e eu conto-te tudo’. Respondo a qualquer questão, como agora”, rematou Richard Plugge, que antes foi… jornalista.

As memórias de quem esteve para desistir e andou a trabalhar numa fábrica de peixe

Falar hoje em Vingegaard, nascido em Hillerslev, é falar de alguém que deu a conhecer a sua história em 2022, quando conquistou a primeira Volta a França que na altura valeu o primeiro triunfo a um dinamarquês desde que Bjarne Riis, em 1996, conseguiu evitar a sexta vitória consecutiva de Miguel Indurain. Aliás, a única coisa que mudou foi mesmo o currículo de um ano para o outro: se em 2022 o Tour foi a única vitória entre os segundos lugares no Tirreno-Adriático e no Critério du Dauphiné, em 2023 o líder da Jumbo teve outros resultados como os triunfos no Gran Camiño, na País Basco e no Critério du Dauphiné. Como é que tudo começou? Cultura de bicicleta da própria Dinamarca e uma dose de influência familiar.

Pensou desistir porque nunca ganhava, teve uma grave lesão, trabalhou numa fábrica de peixe, é o rei do Tour: a ascensão de Jonas Vingegaard

O pai, Claus, é construtor de fábricas de salmão na Noruega mas costumava passar férias na zona dos Alpes franceses, local onde o filho Jonas ia aproveitando para melhorar os seus atributos. Melhorar ou, no mínimo, apurar o gosto pela modalidade. Em entrevista à TV2, a mãe, Karina, contou que teve de fazer um ultimato em relação ao ciclismo. “Quando competia com as outras crianças nunca ganhava nada. Com sorte podia ser um dos três que conseguia pontos. Até agora, nunca tinha subido sozinho a um pódio. Era um pouco selvagem…”, explicou, recordando um episódio em 2012 que acabou por fazer o clique.

“Dois meses antes de começar a escola desportiva de Ikast disse-me que não queria continuar a andar de bicicleta. E foi aí que lhe disse: ‘Tens de ir a não ser que queiras ficar em casa e estudares na primária local’. Deixámos que fosse para a escola desportiva mas tinha que ir para lá sempre de bicicleta mesmo que não competisse. Caso não se sentisse bem, deixava. Tudo mudou nesse ano. Voltou a ir para cima da bicicleta, melhorou e nunca mais parou. Foi a única vez que ouvimos que estava farto da bicicleta”, destacou. Nessa altura, o bichinho da modalidade ficara de vez, algo que começou quando foi ver pela primeira vez, com dez anos, o Tour da Dinamarca que passava por Thisted. Nessa altura jogava ainda futebol na escola mas os Mundiais de ciclismo em Copenhaga, em 2011, mudou de vez o seu trajeto.

No entanto, o estrelato também obrigou a um caminho de esforço e outras profissões, numa história que foi agora recuperada com imagens de um vídeo de 2016 ao canal dinamarquês DR. “Terminei a escola em 2016 e fui logo trabalhar. Primeiro fui para um mercado de peixe, trabalhei lá quase um ano. Depois tive uma lesão, fiquei sem fazer nada uns tempos e quando recuperei fui para uma fábrica de peixe. Deve ter sido esse o vídeo que viram, estive lá até ao verão de 2018 e depois assinei com a Jumbo-Visma em 2019”. A “lesão” que refere foi mais grave do que aparentava nas declarações, com uma fratura na perna que o deixou vários meses parado de maio de 2017 ao início de 2018, mas voltou com a rotina de trabalhar de manhã na fábrica e treinar durante a tarde. Em 2019, só mesmo uma equipa acreditou nele. E bem.

Após começar na Coloquick-CULT como estagiário em 2016 e membro da equipa nos dois anos seguintes, a passagem para a Jumbo mudou de vez o seu trajeto. Teve algumas vitórias isoladas em provas de menor dimensão, ajudou depois Primoz Roglic a ganhar a Volta a Espanha de 2020, deu nas vistas como mais do que uma promessa na Volta a França de 2021, quando agarrou na batuta da equipa depois dos azares do seu companheiro esloveno e acabou em segundo só atrás de Pogacar. Em 2022, teve o ano de afirmação, em 2023 confirmou que é o melhor corredor da atualidade. E aquilo que fez no contrarrelógio que iniciou a terceira semana do Tour acabou por ser o fator diferenciador na rivalidade que criou com o esloveno, sendo que esta foi a segunda vitória de Vingegaard nas duas edições mais rápidas de sempre da Volta a França.