Sempre que acaba uma etapa, a rotina é a mesma: respirar (muito até recuperar o fôlego), procurar quem tem o telefone, ligar às “duas miúdas”, seguir para a panóplia de compromissos de quem tem uma camisola no Tour entre a recuperação ativa numa bicicleta estática. “Esta manhã tinha dito que ia tentar ganhar mais uma etapa por elas”. Prometeu e cumpriu, com um autêntico show na chegada a Hautacam que ficou na retina pelo gesto fabuloso de fair-play quando numa descida o adversário Tadej Pogacar teve uma curva mal medida, caiu e ficou à sua espera – algo valorizado pelo próprio esloveno, num aperto de mão em cima das bicicletas que se tornou a imagem de marca desta Volta a França. No último teste ao triunfo na principal prova de ciclismo, não só conservou a vantagem como ainda lhe colocou outro minuto em cima.

Jonas Vingegaard, de 25 anos, é o nome de quem se fala. Ao longo das últimas três semanas, foi mesmo o nome mais falado. Humilde, resistente, sempre agradecido à família e às raízes que fizeram dele quem é. “Sempre pensei apenas em dar o meu melhor todos os dias e depois ver o que acontece na chegada a Paris”, contou esta semana, acrescentando ainda que a namorada o aconselhou a não ler jornais nem redes sociais para minimizar a pressão normal de quem chegou ao seu patamar. Este sábado, o contrarrelógio de pouco mais de 40 quilómetros entre Lacapelle-Marival e Rocamadour era o último teste para quem resistiu a um total de 15 ataques fortes de Pogacar na montanha. Cumpriu. E a chegada aos Campos Elísios, muito provavelmente já com um copo de champanhe para a fotografia, vai ser uma mera coroação.

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Mas quem é este dinamarquês nascido em Hillerslev que se vai tornar apenas o segundo dinamarquês a ganhar o Tour depois da surpresa Bjarne Riis que quebrou cinco vitórias consecutivas de Miguel Indurain em 1996? Em resumo, um espelho do que fez nas estradas francesas… a começar na Dinamarca, o décimo país a acolher a saída da Volta a França que apresenta números que explicam a “explosão” de novos corredores do país. Um exemplo: em Copenhaga, 95% dos 602.000 habitantes tem uma bicicleta (pelo menos) e 70% utilizam-na para irem trabalhar. Vingegaard, por influência da família, não foi exceção.

O pai, Claus, é construtor de fábricas de salmão na Noruega mas que costumava passar férias na zona dos Alpes franceses, local onde o filho Jonas ia aproveitando para melhorar os seus atributos. Melhorar ou, no mínimo, apurar o gosto pela modalidade. Aliás, em entrevista à TV2, a mãe, Karina, contou que teve de fazer um ultimato em relação ao ciclismo. “Quando competia com as outras crianças nunca ganhava nada. Com sorte podia ser um dos três que conseguia pontos. Até agora, nunca tinha subido sozinho a um pódio. Era um pouco selvagem…”, explicou, recordando um episódio em 2012 que acabou por fazer o clique.

“Dois meses antes de começar a escola desportiva de Ikast disse-me que não queria continuar a andar de bicicleta. E foi aí que lhe disse: ‘Tens de ir a não ser que queiras ficar em casa e estudares na primária local’. Deixámos que fosse para a escola desportiva mas tinha que ir para lá sempre de bicicleta mesmo que não competisse. Caso não se sentisse bem, deixava. Tudo mudou nesse ano. Voltou a ir para cima da bicicleta, melhorou e nunca mais parou. Foi a única vez que ouvimos que estava farto da bicicleta”, destacou. Nessa altura, o bichinho da modalidade ficara de vez, algo que começou quando foi ver pela primeira vez, com dez anos, o Tour da Dinamarca que passava por Thisted. Nessa altura jogava ainda futebol na escola mas os Mundiais de ciclismo em Copenhaga, em 2011, mudou de vez o seu trajeto.

No entanto, o estrelato também obrigou a um caminho de esforço e outras profissões, numa história que foi agora recuperada com imagens de um vídeo de 2016 ao canal dinamarquês DR. “Terminei a escola em 2016 e fui logo trabalhar. Primeiro fui para um mercado de peixe, trabalhei lá quase um ano. Depois tive uma lesão, fiquei sem fazer nada uns tempos e quando recuperei fui para uma fábrica de peixe. Deve ter sido esse o vídeo que viram, estive lá até ao verão de 2018 e depois assinei com a Jumbo-Visma em 2019”. A “lesão” que refere foi mais grave do que aparentava nas declarações, com uma fratura na perna que o deixou vários meses parado de maio de 2017 ao início de 2018, mas voltou com a rotina de trabalhar de manhã na fábrica e treinar durante a tarde. Em 2019, só mesmo uma equipa acreditou nele. E bem.

Após começar na Coloquick-CULT como estagiário em 2016 e membro da equipa nos dois anos seguintes, a passagem para a Jumbo mudou de vez o seu trajeto. Teve algumas vitórias isoladas em provas de menor dimensão, ajudou depois Primoz Roglic a ganhar a Volta a Espanha de 2020, deu nas vistas como mais do que uma promessa na última Volta a França, quando agarrou na batuta da equipa depois dos azares do seu companheiro esloveno e acabou em segundo só atrás de Pogacar. Em 2022, teve o ano de afirmação.

Depois do segundo lugar na Tirreno-Adriático e no Critério Dauphiné, além da sexta posição na Volta ao País Basco, Vingegaard era uma das apostas da Jumbo-Visma versão 3.0 da “banana mecânica” que levava ao Tour Roglic, Wout van Aert e Vingegaard. Havia quase uma “sede de vingança” depois do fracasso de 2020 com uma estratégia que caiu no último contrarrelógio individual e dos azares de 2021 em torno de Roglic. Em 2022, no último domingo, voltaram a surgir os fantasmas: Roglic desistiu, Steven Kruijswijk também, Vingegaard sofreu uma queda que lhe provocou algumas feridas. No entanto, à terceira foi mesmo de vez e o dinamarquês esteve imperial na resposta a todos os ataques. Como Pogacar foi admitindo esta semana, não foi ele que perdeu este Tour mas sim Vingegaard que ganhou este Tour.

Faltava apenas a confirmação “matemática” do sucesso, porque apesar de tudo era um contrarrelógio de 40,7 quilómetros e uma queda poderia fazer depois toda a diferença. Aliás, tinha sido o dinamarquês a admitir que teria especiais cuidados, sendo que já depois do terceiro ponto intermédio chegou mesmo a sair da estrada por ligeiros segundos sem perder o equilíbrio. Pormenor: estava na frente desse parcial. Esse momento teve influência no andamento mas o próprio acabou por desacelerar para não colocar mesmo em causa o triunfo de Wout van Aert. Depois, vieram as lágrimas. De Vingegaard, que nos últimos metros viu a vitória certa; da família, namorada e filha, as primeiras pessoas que abraçou; de Wout van Aert, sensibilizado pelo gesto do companheiro de equipa. E se já tinha um grande avanço em relação a Pogacar, conseguiu ainda aumentar essa distância no contrarrelógio com menos três segundos do que o esloveno.

Na classificação geral, Aleksandr Vlasov foi o grande vencedor do dia, subindo de sétimo para quinto lugar da geral sendo o melhor da Bora. Nas restantes posições, Vingegaard reforçou a liderança com 3.34 de avanço em relação ao antigo vencedor, Tadej Pogacar (UAE Emirates), e 8.13 de Geraint Thomas (Ineos). Seguem-se David Gaudu (Groupama, 13.56), Vlasov (16.37) e Nairo Quintana (Arkéa, 17.24).