Campeões do mundo em 1974, 1990 e 2014. Campeões europeus em 1972, 1980 e 1996. Finalistas do Campeonato do Mundo em 1966, 1982, 1986 e 2002. Finalistas do Campeonato da Europa em 1976, 1992 e 2008. O currículo internacional da Alemanha é extenso, inclui três Mundiais e três Europeus e representa uma das seleções consistentemente mais poderosas das últimas décadas. Até ter deixado de ser.

De 2014 para cá, desde a conquista do Mundial do Brasil, a Alemanha chegou às meias-finais do Euro 2016, caiu escandalosamente na fase de grupos do Mundial 2018, não passou dos oitavos de final do Euro 2020 e voltou a ser eliminada na fase de grupos do Mundial 2022. Pelo meio, Joachim Löw deu um passo ao lado que nunca chegou a ser um passo rumo a lado nenhum e foi substituído por Hansi Flick, que tinha acabado de conquistar tudo com o Bayern Munique.

Este domingo, de forma surpreendente para uns e absolutamente natural para outros, Hansi Flick foi despedido do cargo de selecionador da Alemanha — a menos de um ano do Campeonato da Europa, organizado precisamente em território alemão. Ou seja, e desde que o cargo foi inaugurado em 1924, tornou-se o primeiro selecionador alemão de sempre a ser despedido. A decisão seguiu-se à goleada sofrida contra o Japão, num encontro particular, mas tem contexto: depois do Mundial do Qatar, a Alemanha venceu apenas um jogo, perdeu quatro e empatou outro, com o desaire sofrido perante os japoneses a ser a gota de água para a Federação Alemã de Futebol.

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“A equipa masculina de futebol precisa de um novo ímpeto depois dos recentes resultados desapontantes. Precisamos de um espírito de otimismo e confiança no nosso próprio país. Para mim, pessoalmente, é uma das decisões mais difíceis que já tive de tomar desde que estou neste cargo, porque aprecio o Hansi Flick e todos os seus adjuntos como especialistas do futebol e seres humanos. Mas o sucesso desportivo é a grande prioridade da Federação. A decisão era inevitável”, explicou Bernd Neuendorf, o presidente do organismo.

O sucessor imediato de Hansi Flick será Rudi Völler, até aqui diretor técnico da Federação. O antigo jogador foi o responsável pela comunicação do despedimento ao agora ex-selecionador e vai ocupar o cargo de forma interina até que seja encontrado o senhor que se segue — estreando-se já esta terça-feira, num jogo particular contra a vice-campeã mundial França. “O Hansi fez tudo o que podia para dar a volta as coisas depois do Qatar. Mas esgotou-se ao longo dos últimos meses. A derrota contra o Japão mostrou-nos que não poderemos fazer mais progressos nesta situação”, indicou Völler, que foi campeão mundial como jogador em 1990 e levou a Alemanha até à final do Mundial 2002 enquanto selecionador.

Numa fase ainda algo embrionária para realizar grandes especulações, até porque a larga maioria das decisões só será tomada a partir do jogo de terça-feira contra França, surgem desde já três nomes que podem suceder a Hansi Flick e orientar a Alemanha no próximo Europeu: Julian Nageslmann, sem clube desde que foi despedido do Bayern Munique no passado mês de março; Matthias Sammer, antigo treinador do Estugarda e diretor desportivo do Bayern e atual consultor do Borussia Dortmund; e ainda Oliver Glasner, sem clube desde que deixou o Eintracht Frankfurt no final da época passada.

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Antes de olhar para o futuro, porém, é necessário olhar para o passado — e perceber como e por que é que a Alemanha chegou aqui. Existem motivos mais práticos e diretos, como a ausência de um verdadeiro avançado-centro como Miroslav Klose, o facto de Bayern Munique e Borussia Dortmund terem cada vez menos jogadores alemães nos onzes iniciais e de elementos outrora cruciais como Gnabry, Süle, Havertz ou Goretzka terem caído a pique em termos de rendimento. Mas os motivos reais poderão estar para lá daquilo que se vê dentro de campo.

E foi Ilkay Gündoğan, agora capitão depois de Hansi Flick lhe ter dado a braçadeira, que assumiu isso mesmo. “É muito difícil. Temos de admitir que não estamos ao mesmo nível de equipas como a que enfrentámos hoje. Não somos bons o suficiente, neste momento. Essa é a realidade. Se calhar até achamos que somos melhores do que somos. Dá para sentir que muitos dos nossos jogadores estão numa luta mental com eles próprios. Não há confiança, não há compreensão do timing das decisões e claro que estes resultados não ajudam. Sinto que estamos todos a lutar contra nós próprios e isso torna difícil a criação de um espírito, de uma atmosfera. Há uma enorme falta de confiança”, explicou o médio do Barcelona depois da goleada sofrida contra o Japão.

Uma falta de confiança que reina entre os jogadores, mas que também se estendia à equipa técnica. De forma quase irónica, a Amazon Prime lançou na semana passada o documentário “All or Nothing”, que acompanhou a seleção alemã durante o Mundial do Qatar. Ao longo de quatro longos episódios, é possível perceber que Hansi Flick tinha muitas dúvidas sobre as decisões que tomava e não conseguia motivar a equipa — acabava por pedir opiniões e soluções aos jogadores, numa postura que aparentava ser colaborativa mas só revelava enormes níveis de insegurança.

No fundo, o documentário espelha aquilo de que toda a gente se tinha esquecido: quando chegou à seleção alemã, Hansi Flick tinha apenas 18 meses de experiência ao mais alto nível, já que tinha substituído Niko Kovac no comando do Bayern Munique e acabou por conquistar a Liga dos Campeões com os bávaros em 2021. Ainda assim, foi atirado para o comando de uma seleção que já estava envelhecida, desmotivada e em claro fim de ciclo sem que tivesse tido tempo para se preparar.

Adicionalmente, “All or Nothing” também reabre a porta a um assunto que já tinha explorado: as animosidades dentro do balneário, no geral, e a animosidade entre Rüdiger e Kimmich, em particular. Durante um treino, os dois jogadores chegaram a colar as cabeças e Kimmich perguntou “nunca me dizes nada na cara, falas sempre por trás, achas que não jogo para a equipa?”. “Eles dizem-te coisas, dão-te instruções”, respondeu Rüdiger, com o jogador do Bayern Munique a concluir “estás sempre a dizer-me ‘faz o que quiseres’ e depois acabas a dizer o contrário”. De recordar que, em 2018 e durante o Mundial da Rússia, os dois internacionais já tinham discutido durante um treino, acabando separados pelos colegas.

Motivos à margem, é certo que o futebol alemão atravessa um momento de crise profunda — até porque, equipa masculina à parte, também a seleção feminina foi eliminada na fase de grupos do Mundial que decorreu recentemente na Austrália e na Nova Zelândia, num afastamento chocante de uma das grandes favoritas à conquista do troféu.