Na madrugada deste domingo, o contabilista Husam Abdelgawi, de 31 anos, ouviu os cães a ladrar. Ainda ensonado, levantou-se e dirigiu-se ao andar de baixo da sua casa para ver o que se passava com os animais. Assim que abriu a porta sentiu água nos pés. Era um indício da chegada da tempestade Daniel, que atingiu a cidade costeira de Derna, na Líbia, com chuvas torrenciais que provocaram a rotura de duas barragens.

Até ao momento foi confirmada a existência de 11.300 vítimas mortais. Husam Abdelgawi, que perdeu 30 amigos devido às cheias, não entra para essa contagem, o que considera ser um “milagre”. Foi à BBC que contou que, na noite de domingo, depois de a água arrancar a porta da frente da sua casa, correu para as traseiras, juntamente com o seu irmão mais novo, Ibrahim.

Quando abriram a porta das traseiras, os irmãos encontraram uma “cena horrível e inimaginável, pior do que a própria morte”: “Os corpos de mulheres e crianças passavam a flutuar por nós. Carros e casas inteiras foram apanhadas pela corrente. Alguns dos corpos foram arrastados pela água para dentro de nossa casa”.

A água também arrastou Husam e Ibrahim, que foram levados para fora de casa. Depois, tiveram de utilizar cabos de energia (que estavam a flutuar, embora ainda amarrados aos postes) para se puxarem em direção a um prédio próximo daquele local. Conseguiram chegar ao quinto andar e o irmãos mais velho explica que sobreviveram porque estavam “na parte mais alta da cidade”. “Nas partes mais baixas, não creio que alguém no quinto ou sexto andar, tenha sobrevivido. Acho que estão todos mortos.”

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Quase uma semana depois do início da destruição causada pela chuvas, as histórias de sobreviventes continuam a surgir. É o caso de Safwat Ashraf, professora de 24 anos, que garante que “nunca” vai “esquecer o que aconteceu” em Derna. “A nossa comunidade sente-se destruída. Somos uma cidade pequena e unida, onde todos se conhecem. As nossas famílias e amigos morreram”, contou à Sky News, acrescentando que ouviu gritos de mulheres e crianças que se abrigaram numa escola perto de sua casa.

Também Gandi Mohammed Hammoud, engenheiro estrutural, ouviu “amigos e vizinhos a gritar de terror enquanto a água destruía as suas casas e apartamentos”. Depois, disse à Sky News, “fez-se silêncio, o que significa que morreram”. “Vi alguns amigos a serem arrastados à minha frente. Alguém deveria pagar por estas mortes. Alguém deveria ser responsabilizado pelo que aconteceu”, pediu, por considerar que existiu negligência nesta tragédia, uma vez que, disse, especialistas emitiram vários alertas sobre o mau estado das duas barragens.

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Por volta da mesma hora em que Husam Abdelgawi foi ver o que se passava com os seus cães, Amna Al Ameen Absais, estudante de medicina de 23 anos, colocava um colete salva-vidas num dos seus irmãos mais novos. Desde que ficaram órfãos, que cuida dos três irmãos mais novos. Ao início, relatou à BBC, não teve medo, mas depois a chuva começou a ficar mais forte e ouviam-se sirenes. “O barulho estava a ficar muito mais alto. O meu irmão disse que conseguia ver a água a cobrir a rua”, contou.

Nessa altura, Amna pegou no gato da família e no seu passaporte, bem como no dos seus irmãos, e saiu de casa. Dirigiu-se ao terceiro andar do prédio onde vivia, dois andares abaixo. “As pessoas olhavam para fora, para a escuridão, a rezar”, recordou. Depois, a água chegou onde estava e “toda a gente começou a gritar”. Acabou por ter de se refugiar no telhado do edifício.

Do telhado, conseguiam ver um outro prédio, onde uma família — de quem eram amigos — agitava as suas lanternas, antes do edifício desabar por completo. “Parecia um terramoto. Essa família ainda não foi encontrada. O filho deles está à procura, dissemos-lhe que vimos o prédio abater diante dos nossos olhos”, disse à BBC.

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