No Giro ganhou Primoz Roglic. Foi buscar forças onde ninguém conseguia imaginar após sofrer um quase fatídico problema mecânico na pior altura do percurso do contrarrelógio da penúltima etapa, contou com um apoio fabuloso dos adeptos eslovenos e conseguiu passar Geraint Thomas na classificação geral para fazer a festa na chegada a Roma a passar pelo Coliseu como um Gladiador que resiste a todos os contratempos. Para isso, contou e muito com Sepp Kuss, um fiel escudeiro que acabou em 14.º pelos minutos que perdia quando acabava de marcar o ritmo para o seu líder e se deixava cair, Koen Bouwman (25.º) e Sam Oomen (36.º) e até o eterno fazedor de sonhos Rohan Dennis (41.º) – que o diga por exemplo Tao Geoghegan Hart, na etapa do Stelvio do Giro de 2020. Após um 2o22 com as suas doses de frustrações, a Jumbo começava na frente.

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No Tour ganhou Jonas Vingegaard. Naquele que era duelo mais aguardado da época por colocar frente a frente o vencedor e o segundo classificado da Volta a França dos últimos dois anos, Tadej Pogacar até contou com um Adam Yates em grande momento (não se pode dizer o mesmo de Marc Soler) mas o dinamarquês, além de se apresentar mais forte e capaz de controlar a irreverência de um corredor que simboliza a força da nova geração que recusa desistir em qualquer cenário, contou mais uma vez com um escudeiro ainda mais fiel chamado Sepp Kuss (acabou em 12.º a mais de 37 minutos por rodar apenas pelo seu líder), um Wilco Kelderman sempre importante na montanha (18.º) e um Nathan van Hooydonck que hoje se percebe ter sido mais relevante do que a 93.ª posição final deixava adivinhar por tudo aquilo que faz uma equipa e não se vê – sem esquecer Wout van Aert, que andou sozinho a fazer milagres até desistir em 23.º quando foi pai.

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Na Vuelta vai ganhar Sepp Kuss. E é aqui que entronca aquela que é a grande surpresa e ao mesmo tempo o grande feito de uma equipa talhada para dominar o panorama do ciclismo mundial das grandes voltas mas que foi mais além do que se pensava com o nome que era menos provável. Há um episódio que parecendo ser quase inócuo resume na perfeição aquilo que foi o comportamento da Jumbo em Espanha, com a equipa a explicar de imediato nas redes sociais que tinha sido o norte-americano a dizer “Go guys!” quando Roglic atacou, Jonas Vingegaard foi atrás e o camisola vermelha ficou para trás – sendo que acabou “rebocado” por Mikel Landa e foi ter após a meta com o espanhol a pedir desculpa por ter sprintado pelo terceiro lugar, a explicar que precisava daquelas bonificações mesmo sabendo que o corredor da Bahrain também merecia.

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Houve um pouco de tudo, entre birras disfarçadas, lutas de egos e até umas pitadas de sal vindas da mulher de Primoz Roglic nas redes sociais. No final, por mais que tenha custado a todos, imperou aquilo que parecia ser o mais racional e até justo. A Vuelta vai terminar com a Jumbo-Visma a fazer história com a vitória nas três grandes voltas no mesmo ano, como nunca tinha acontecido, e com o único corredor presente no Giro, no Tour e na Vuelta (onde ainda andava com as marcas na cara que sofreu na penúltima etapa da Volta a França) a ter o seu “prémio” individual. Como chegou a escrever a Marca, o domínio era tão grande que quase podiam decidir o vencedor com um “pedra, papel ou tesoura”. Não foi preciso. E entre o drama do acidente de van Hooydonck, a expulsão de um elemento de apoio que empurrou um elemento da polícia após uma chegada e a evidente frustração, Vingegaard acabou por colocar ordem na casa no final.

Hoje, a Jumbo, aquela equipa que apelidam de Laranja Mecânica como aquela grande formação neerlandesa de futebol dos anos 70 de Cruyff e companhia, podia não existir. Aliás, teve de bater no fundo para conseguir a reinvenção até ao patamar onde se encontra hoje, com alguns problemas de doping no final da primeira década do século quando era ainda Rabobank que tirou o banco da modalidade. A partir, foi quase feito um Livro Branco de tudo (ou não se chamasse a nova equipa de Merijn Zeeman e Plugge de Belkin), houve uma inspiração na forma como os All Blacks construíram uma dinastia no râguebi e formou-se um novo conjunto com elementos promissores mas dentro de um orçamento que passou do segundo mais alto para o mais baixo de todos. Primoz Roglic foi o primeiro, seguiram-se Steven Kruijswijk, Tom Dumoulin e Wout van Aert, depois vieram Sepp Kuss e Jonas Vingegaard. Tudo desde 2015 até aos resultados agora conhecidos.

Uma reportagem da Marca apresenta vários pormenores que podem justificar o sucesso. A deteção de jovens talentos sendo uma equipa de um país como os Países Baixos onde o ciclismo tem um dos mais altos índices de popularidade, a preocupação com todos os pormenores como a preparação de contrarrelógios em (caras) câmaras de ar condicionado com determinada temperatura, dietas individuais com comida entregue em casa se necessário. No entanto, havia algo que não se controlava com medições, regras ou estudos por ter um lado emocional: a questão dos egos. E foi aí que se acabou por escrever direito por linhas tortas.

Depois de ter feito um contrarrelógio aquém das expetativas, o que levou até a que se colocasse em causa o momento que atravessava, Jonas Vingegaard parecia ser quase um elo mais fraco (ou menos forte) na Jumbo perante a liderança de Sepp Kuss assente no triunfo na chegada ao Observatório Astrofísico de Javalambre e bem defendida nos 25,8 quilómetros de Valladolid e a fase que Primoz Roglic atravessava. Depois, o nórdico deixou por terra toda a concorrência no Tourmalet. Em Bejes, a etapa parecia para o esloveno. Aliás, e como confirmou a própria equipa, até perto do fim era para o esloveno. Nesse dia, Roglic não conseguiu sair e um Vingegaard a pensar no amigo Nathan van Hooydonck foi buscar a segunda vitória, subindo também à vice-liderança. O que aconteceu no Angliru terá sempre de ser explicado pelos protagonistas mas Roglic parecia querer ter o seu dia, Vingegaard não concordou e Kuss aguentou-se in extremis. A Vuelta “acabou” aí.

A forma como Vingegaard colocou ordem na casa e controlou os acontecimentos na etapa com chegada a La Cruz de Linares foi quase um entregar de vitória a Sepp Kuss sem que Roglic pudesse fazer nada a não ser reconhecer que o norte-americano merecia pelo que fizera não só em Espanha mas também nas outras grandes voltas. “O Angliru marcou um antes e um depois. Mudámos a tática e para mim é justo. Nós não pensávamos que fossemos os três mais fortes no Angliru e depois do que aconteceu a visão tornou-se mais clara. Era uma situação difícil porque a ideia da última semana era dar tudo na estrada. Acredito que mereço esta posição”, comentou Sepp Kuss. “Tenho os meus próprios pensamentos sobre as táticas da equipa”, referiu o enigmático Roglic, que nunca pareceu muito satisfeito por não ficar no topo da Vuelta. Num ninho que tinha tudo para alguém se picar, as “vespas amarelas” fizeram a diferença para a história.