É o primeiro romance de Mieko Kawakami publicado em Portugal, romance esse que já tem contado com elogios no The Economist ou no The New York Times. Kawakami, nascida em 1976 em Osaka, depressa se tornou numa das mais prestigiadas autoras japonesas da contemporaneidade.

Em Seios e óvulos, o leitor segue, de forma escorreita, a vida de três personagens de gerações diferentes: Midoriko, de 12 anos, anda obcecada com o facto de as mulheres terem óvulos, pesando as modificações no seu corpo que a chegada à puberdade implica; a mãe, Makiko, é obcecada com seios, e tem o sonho de pôr implantes mamários; Natsuko, sua irmã, é o eixo que possibilita o romance: vai ligando os membros da família (incluindo antepassados) e trazendo à narrativa considerações sobre o lugar da mulher no mundo e no Japão, e a expectativa social sobre uma mulher ou uma mãe, ou, regra geral, a expectativa de que mulher seja equivalente a mãe.

Natsuko é a personagem que cose os fios da narrativa, sendo dela o olhar mais incisivo e, em simultâneo, mais panorâmico. Bem construída, a personagem agarra logo nas primeiras páginas, num exercício rápido e eficaz de criação de empatia por parte da autora. É que, logo à cabeça, temos a personagem inteira, com inquietações e uma vida apresentada de caras, com o pouco dinheiro no bolso, o medo da solidão, as incursões no passado, a expectativa social sobre si – e o que fazer apesar disso. Com ela, temos o embate diário da vida de uma família: as contas para pagar a custo, os sonhos adormecidos, a contraposição entre estes e a expectativa social, o envelhecimento como diminuição da fertilidade e das possibilidades.

Num diário, Midoriko vai registando as transformações no corpo (por exemplo, a descamação do endométrio, que significará que passará a ter o potencial de ser mãe), ao mesmo tempo que chega à fase da vida em que começa a abrir os olhos ao que tem à volta. Este diário, que regista essa fase de descoberta – e dúvida –, é, na narrativa, quase uma espécie de reflexo vivo das preocupações de Natsuko, quase uma espécie de confirmação ou contraponto do que vai cogitando ao longo da narrativa. Os dois, que existem em planos diferentes, vão dialogando na narrativa, dando perspectivas, não raras vezes sobre o mesmo assunto, de personagens que pertencem a gerações diferentes.

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Por aqui se vai fazendo a primeira parte do romance – o “Livro Um” –, em que se vai mostrando o papel da mulher no Japão tendo em conta a obrigação social de manter a atractividade sexual – daí que haja um ênfase, ao longo dos capítulos que compõem esta parte, em seios, para o qual contribui o desejo de Makiko. Ao mesmo tempo, mostra-se a luta de quem tenta manter a ilusão de que a beleza é coisa natural, quase coisa sem cuidados, assim como se cogita o envelhecimento face aos padrões de beleza esperados.


Título: “Seios e óvulos”
Autora: Mieko Kawakami
Tradução: Renato Carreira
Editora: D. Quixote
Páginas: 504

No “Livro Dois” – segunda parte –, já temos uma incursão mais aprofundada na psique de Natsuko. Agora, o leitor vê as personagens à luz da responsabilidade social de reprodução, que é regra geral atribuída às mulheres. Com 40 anos, Natsuko, não tendo tido filhos nem casado, receia a solidão. Mas, além de não ter interesse em sexo, tem ainda o peso da visão social sobre os métodos de procriação medicamente assistida no Japão. Enquanto pensa na vida que pode ter, cogita sobre se deve ou não ser mãe solteira num país que o condena, ou seja, tem de balançar o seu desejo/plano para o futuro com o peso social que adviria da sua realização.

Kawakami vai dando a perspectiva de três personagens, e através destas vemos um país, e a forma como este vive aliando os braços entre conceitos antigos e o progresso da ciência e social. Tudo existe em concomitância num livro que abre a janela para a cultura de um país. É que, havendo incursões na psique das personagens, há ainda, no seu decorrer, a colocação do indivíduo perante o colectivo – vê-se um ao ver-se o outro, sempre um em relação ao outro. E, com isso, o romance, que nunca perde o carácter intimista, também não abdica do seu cunho social. À medida que as personagens vão expondo questões de género, também vão mostrando um mundo em que o mercado de trabalho não implica uma vida estável – as adultas trabalham, e dois salários não garantem dinheiro que se aguente até ao fim do mês. Aliás, o livro abre logo com considerações sobre a pobreza – sobre o número de janelas de uma casa como marcação do lugar económico de cada um. Com isto, a autora vai mostrando um país em que, massacradas pelo trabalho, as pessoas não só conseguem ascensão social ou conforto como chegam a não conseguir, com frequência, a garantia da satisfação das necessidades básicas.

Seios e óvulos parece voltar-se para a ideia de contar a realidade, e por isso sabe a coetâneo, soando a romance realista japonês (e distanciando-se, por exemplo, da abordagem que nos traz a literatura mais exportada do Japão, com assinatura de Murakami). Praticamente não há homens na narrativa, excepto em breves apontamentos, o que não deixa o romance amputado de nada. Em vez disso, como há três cabeças a pensar, há um universo surpreendente de vidas – cruzam-se, pertencem à mesma família, mas trazem a diferença do olhar geracional e lugares no mundo diferentes. Makiko, por exemplo, parece estar associada a uma ideia mais compacta de integração na sociedade em que vive, e para isso basta-lhe ser mãe – mãe além de mulher, ou mãe e mulher ao mesmo tempo, ou mulher e, por isso, mãe. Enquanto pertence ao núcleo, Natsuko vai mostrando o seu lugar atípico e o seu desconforto em dois planos: o da noção de que o olhar alheio reforça essa atipicidade e uma certa vontade de ter tido outra vida, ou de poder ter outra vida, com um olhar com alcance no futuro.

Claro que nada disto se faz sem que Kawakami, de forma elegante, ainda que não necessariamente discreta, releve os papéis de género na sociedade que retrata – o que esperar de cada um consoante as hormonas que produz. Prova disto é Natsuko ter de lidar com a imposição que a expectativa implica, com alguém a dizer-lhe que, tendo nascido mulher, certamente quer ter filhos. O lugar de cada um parece atribuído a priori, o que não é dramático para quem tem ambições que batam certo com o esperado. Havendo dissonância, há um permanente embate, um desconforto interno, psicológico, e uma espécie de desfasamento social que vai sabendo a menorização face ao olhar alheio – eis, então, o indivíduo em contraste com o colectivo.

Convém ainda acrescentar que Seios e óvulos não é catequizador – o livro mostra, não explica, e virá daí a sua contundência, para além de um trabalho na prosa que vai permitindo ao leitor não apenas ver ou seguir as pessoas, mas estar na cabeça delas. Os diálogos são vivos, soam a gente a falar, e a incursão na psique está bem doseada com os toques de acção. Assim, para lá de abordar o Japão como coisa panorâmica, resultado de fenómenos sociais, económicos, políticos, o livro é ainda uma viagem pela intimidade. De resto, como tudo é escorreito, ao leitor não é exigido um lugar particularmente activo na leitura, bastando-lhe ver.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.