Na apresentação do novo filme de Bruno Gascon, “Pátria”, que se estreia esta quinta-feira, podia ler-se o seguinte: “A sua mais recente longa-metragem retrata uma distopia não tão distante da realidade e aborda questões urgentes como a xenofobia, o crescimento dos extremismos políticos e a liberdade de expressão. É, assim, um filme atual, relevante e extremamente necessário nos dias que correm”. Uma afirmação arriscada ou uma declaração plena de sentido? Com Tomás Alves, Matamba Joaquim, Rafael Morais e Iris Cayatte no elenco principal, o realizador de Sombra (2020) atirou-se à preocupação que manifesta face ao que diz serem “extremismos”, um momento, diz-nos, em que todos vivemos entre “o preto e o branco”, dentro de bolhas, terrenos férteis para o aumento do discurso de ódio, entre a política e a sociedade civil.

No filme estamos divididos entre dois grupos: de um lado, os violentos homens brancos — e uma mulher — da SSK, suposto grupo armado do tal regime ditatorial: do outro, os oprimidos homens brancos — e alguns homens negros — que acabam a levar uma sova sempre que são apanhados na rua fora do recolher obrigatório. Rocky (Tomás Alves), que já foi professor, é um expatriado que recusa fugir ao lado do seu melhor amigo Ismael (Matamba Joaquim), sendo obrigado a trabalhos forçados numa pedreira, sem recursos nem direitos. Trata-se de um ambiente onde nada mais paira a não ser a pura violência. Nunca se chega a perceber que ideologia está por detrás do filme, nem qual é, acima de tudo, o seu objetivo além da pura repressão.

[trailer do filme “Pátria” de Bruno Gascon:]

Mas talvez essa seja mesmo a intenção principal de Bruno Gascon — que tudo neste seu Pátria faça lembrar ditaduras, em especial as europeias da primeira metade do século XX, numa amálgama de extremos que possa chegar ao maior número de pessoas. O realizador não inventa, generaliza factos para contar a sua história. Essa estética está espelhada em todos os cenários, no guarda-roupa “inspirado nos hooligans do futebol inglês dos anos 80” ou nas bandeiras e fitas vermelhas que usam. Só que, tal como a história mostrou e como Pátria quer voltar a apresentar, há sempre quem diga basta. No filme, a revolta começa a ser congeminada numa casa abrigo de outros tantos expatriados.

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“Porque é que o que filme é necessário e para quem? Diria que é necessário para toda a gente. Fala de liberdade, da falta dela, é uma chamada de atenção para essa realidade. Estamos perante uma distopia realista. Vivemos tempos de extremos opostos, de branco e preto, mas, enquanto sociedade, não devíamos voltar a cair nos mesmos erros que a história diz que cometemos”, explicou Bruno Gascon ao Observador. O realizador de Barcelos, cidade escolhida para rodar, durante oito semanas, no segundo confinamento durante a pandemia de Covid-19, refere, por exemplo, países como Itália, sob “um governo de extrema direita”, onde “ideias demagogas apontam para o que as pessoas acham que querem ouvir”. E porquê um filme português, rodado em Portugal, sobre este tema e com este fundo? Para Bruno Gascon, a resposta parece óbvia: “Veja-se o crescimento de partidos com discurso de ódio e populistas que vamos vendo cada vez mais nos telejornais, no nosso dia-a-dia. Temos pessoas que basta dizerem uma frase que estão nas primeiras páginas de tudo. É um princípio que antevê para onde estamos a caminhar”.

No filme a ausência de liberdade nunca é propriamente explicada, mas facilmente percebemos que os protagonistas não podem deslocar-se muito além das casas onde estão escondidos. Porque, lá está, correm o risco de acabar sovados pelos corpulentos membros da SSK. Nesta distopia reduzida no espaço, há a salientar um ambiente tóxico quase exclusivamente masculino. Aí, a história dará razão a Bruno Gascon. “As pessoas vão perceber que as personagens femininas têm uma grande preponderância. As mulheres foram subjugadas no cinema e em vários sectores da sociedade, mas estas personagens têm um espectro muito maior do que os homens. As ditaduras são força bruta, é um regime patriarcal. A inteligência e a emocionalidade foram criadas pelas mulheres”, argumenta. Declarações que podem não colher consenso, mas que são as de um realizador que tem andado preocupado com causas sociais, desde o desaparecimento de crianças em Portugal ao tráfico humano.

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Bruno Gascon não nega que o seu filme terá um percurso difícil tendo em conta que decidiu escolher um género já amplamente produzido. Acredita, no entanto, na “originalidade” de Pátria e apresenta a sua visão dos acontecimentos num formato que diz também servir como alerta. Há quem possa até fazer a comparação com outras cinematografias portuguesas mais recentes, como Nação Valente, de Carlos Conceição, ou Mosquito, de João Nuno Pinto. Estes dois últimos falam de fantasmas e traumas, mas de outro tipo e de outro tempo. Em Pátria há um detalhe a complicar — ou a desafiar — a missão do realizador: o tema do filme está na atualidade.

Claro que não haverá quem discorde do que Bruno Gascon defende a seguir: “É importante que continuem a existir este tipo de obras para que se continue a falar disto”, garante. O realizador chegou a ler Mein Kampf, ouviu e reviu discursos políticos da altura e inspirou-se no livro 1984 de George Orwell. A importância de relembrar a história é inegável, resta saber como, quando e de que forma nos queremos lembrar dela e se filmes como Pátria, com problemas orçamentais visíveis na profundidade narrativa, fazem parte das possibilidades.